Hoje escrevo sobre a aldeia de Água Travessa. Fica no extremo Sul do concelho de Abrantes. Sim, a minha cidade. Faz fronteira, a Sul com o Alentejo, e a Oeste com o concelho da Chamusca, ou seja, onde o Ribatejo atinge o seu estado mais puro. Isto, tendo em consideração que faz (a aldeia) parte de um concelho, que a Norte faz fronteira com a Beira Interior e dela recebe inúmeras influências. Digam-me lá se, para começo de história, esta pequena aldeia não tem tudo para ser especial com tantas influências culturais? Para mim, é muito especial. Por tudo isto e porque a minha Liliana é de lá (obrigado Água Travessa!). Portanto, também é, um bocadinho, a minha aldeia. Acho que já conquistei esse direito.
Recordo a primeira fez que fui à Água Travessa. Já contei esta história umas 1000 vezes. Claro que foi para ver a Liliana. Já namorava com ela (isto há 15 anos) e tinha acabado de tirar a carta de condução. Acho que ainda não tinha conduzido 5 vezes com carta e tinha conduzido umas 20 vezes na vida. Ainda estava inexperiente no assunto, mas o amor falou mais alto, e lá segui de casa dos meus pais, que fica a cerca de 25km de Água Travessa, para ir à festa de anos de um primo da Liliana (não me recordo qual, ela tem muitos). Uma espécie de rumo ao desconhecido. Era noite e só sabia que para chegar a Água Travessa, tinha que seguir até à Bemposta (outra aldeia) e virar à direita. Meus amigos, isto foi há 15 anos. Por isso, google maps, gps e afins, não existiam (e estava escuro para usar o mapa). Lá fui até à Bemposta, lá virei à direita. Até aqui tudo bem. Sigo até à Chaminé, uma aldeia intermédia, e deparo-me com uma espécie de cruzamento. Hoje sei que não é cruzamento nenhum, mas na altura pareceu-me. A Liliana tinha-me dito que era sempre em frente e não tinha falado em nenhum cruzamento. Segui, naquilo que me pareceu, um sempre em frente. Já estão a ver que fiz asneira. Passado cerca de 200m entrei numa estrada de terra batida. Achei estranho, mas não impossível. Ela também não me tinha dito que era alcatrão, sei lá, na altura ia tão concentrado na condução, que nem pensei muito no resto. Pior, nessa estrada de terra batida, bem estreita, começou logo com uma subida e com uma curva apertada à direita e com espécie de barreira (que na altura me pareceu um precipício) do lado esquerdo. Com a estrada cada vez mais curta, só pensei na minha ingenuidade: “bem, se ela vai de autocarro para escola, tem de vir de cavalo até aqui e depois então apanha o autocarro”. No meio destes pensamentos deixei o carro ir abaixo. Na curva e na subida. Lembram-se que tinha a carta de condução há pouco tempo? Pois bem, o ponto de embraiagem era uma novidade para mim. Se numa subida pequena em alcatrão já era uma briga, numa subida íngreme, com uma curva e às escuras, era uma tarefa milagrosa. Como tinha 18 anos e ia ver a minha namorada, não podia dar parte fraca e deixar ali o carro e chamar alguém mais experiente para fazer a manobra. Vá de tentar eu. Passadas duas tentativas, já estava com uma roda a ribanceira. Só pensava: “eu morro aqui!” ou pior “parto o carro todo ao meu Pai, e ele depois mata-me”. Morria de qualquer das maneiras. Revolvi ligar para a Liliana, não para me indicar o caminho ou para alguém me ajudar com a manobra. Estava tão desesperado, que a minha vontade era dizer-lhe para ela mandar um helicóptero, para me salvar a mim, e principalmente para salvar o carro. Estava sem rede. Valha-me Deus, rede era mentira. E apesar de não saber bem a que distância estava da Água Travessa, achei que gritar por ela não fazia sentido. Num acto de desespero, do género ou morro ou vivo, meti-me dentro do carro outra vez, sabia que só tinha mais aquela hipótese. Chave na ignição, travão de mão puxado e acelerador no máximo. Claro que o carro arrancou, arrancou foi muito depressa e não arranquei uma árvore porque não calhou. Lá voltei ao cruzamento, ainda com suores frios, lá segui pelo caminho que parecia correcto (pelo menos era de alcatrão). Passados 2 minutos cruzo-me com um carro onde ia a Liliana e um vizinho, iam à minha procura. Ninguém demora 1 hora do Rossio à Água Travessa. Só lhe disse não sabia bem o caminho, mas que era um perito a fazer pontos de embraiagem. Não podia falar no resto.
Hoje, e acho que logo na semana a seguir à primeira visita, todas a viagens até lá foram bem mais calmas. A imagem de terror passou e passei a gostar muito daquele lugar. Apesar de na altura viver num meio pequeno, mas era muito mais urbano que a ruralidade positiva da Água Travessa. Era um universo paralelo. Liberdade, a natureza (sim, aqui ouvem-se mesmo os pássaros) e a própria genuinidade das pessoas, quase avessa aos males de meios maiores, transmitiram-me sempre uma sensação de bem estar e tranquilidade. Quase como o tempo passar mais devagar e ter mais tempo para viver, e para sonhar. Depressa fiz amigos, depressa deixei de ser um estranho. E a ligação com pessoas, não só nos faz conhecer o verdadeiro coração de um lugar, como nos conecta de uma forma diferente a ele. Bailes, pescarias nas barragens, jantares, churrascadas, voltas de bicicleta, ouvir e contar histórias, mergulhos na piscina, passeios pelo campo ao final da tarde, ir ver o touros na pastagem, enfim tudo coisas simples, mas que ao mesmo tempo são grandiosas e que criam memórias. Que me prenderam ali e que me fizeram fazer parte daquele lugar.
Anos mais tarde, já com o projeto do Meu Escritório na cabeça, comecei olhar além de todas as sensações que aquele lugar me provocava. A olhar além de ser o lugar onde tinha “nascido” e sido criada, e onde na altura vivia, a Liliana. Comecei a olhar de uma maneira diferente quando a mãe da Liliana, fazia tomatada ou couves com feijão para o almoço. Comecei a olhar de uma maneira diferente para quando via as pessoas, e meus amigos, a trabalhar, ora na cortiça, ora vindima. Artes não vistas na minha aldeia. Passei a perceber que na viagem até à Água Travessa, desde o Rossio, saí do Tejo e de uma zona de regadio, para uma zona de montado. E que para uma diferença tão grande, a distância de 25km que separam estes dois lugares, era demasiado curta. Passei, cada vez com mais fascínio, a passar a aldeia Foz, a seguir à Água Travessa, onde a última rua da aldeia já pertence ao conselho da Chamusca, para ir ver as zonas pastagem de gado bravo. Grandes espaços, com touros e cavalos. Percebi que as pessoas, a paisagem, a comida, a cultura, se comportam de uma maneira muito especial. De uma forma multicultural. As pessoas falam de uma maneira diferente, comem uma comida diferente e tem actividades típicas de diferentes regiões. Não passei a achar a Água Travessa melhor que outros, mas passei a acreditar ou ter a certeza, que era lugar diferente. E isto para a cabeça de um sonhador, e viajante, começou a parecer-me genial.
15 anos depois daquela viagem atribulada de inicio de namoro, estou casado com Liliana. Com a menina da Água Travessa. Nos últimos anos passei a ir menos vezes à Água Travessa. Muito por culpa do Meu Escritório. Aquele que me fez ver que aquele lugar era mesmo especial. Mas que nos últimos anos, passou a profissão e me “obrigou” a viajar por esse Mundo fora a descobrir outras “Águas Travessas”, e a ter menos tempo para a (minha) Água Travessa. Apesar disso, acho que cada vez, dou mais valor aqueles passeios de final de tarde, com o dia a virar noite, sem qualquer obstrução, na natureza, a ouvir os pássaros e sem perceber bem se estou no Alentejo ou no Ribatejo, mesmo sabendo que estou no concelho de Abrantes, que pertence ao Médio Tejo, onde o seu Norte, faz fronteira com a Beira Interior. Percebem o que me prende a este lugar especial?