Dia 4 de Agosto de 2018, 14h00, um dos dias mais quentes da história. Estava eu, sozinho, sentado no corredor do piso 5 do Hospital de Abrantes, junto aos elevadores. A minha Liliana tinha acabado de passar por mim, a caminho do bloco, para uma cesariana inesperada. Estava nervoso, ansioso, feliz, preocupado, sonhador e com o ritmo cardíaco alterado. Durante meses pensei como seria este momento. Pensei que podia chorar, pensei podia rir, pensei que nem dava por ela e a coisa acontecia. Nunca pensei que, “no grande momento”, pudesse estar a ver a minha Liliana, com a minha Alice quase a sair, a caminhar para uma cesariana por uma complicação de última hora. Aparentemente, era apenas um pequeno problema que iria ficar revolvido. Mas os “pequenos problemas”, quando nos tocam a nós, e num momento tão sensível e com expectativas várias, tornam-se num verdadeiro cabo das tormentas. A minha cabeça estava num turbilhão de pensamentos. Por um lado a preocupação com a minha Liliana, por outro lado um desejo enorme em conhecer a minha Alice.
Não sei se por coincidência ou por acaso a sala de entrada da maternidade estava completamente vazia. Estava um silêncio absoluto. Sentei-me em frente ao relógio a ver os minutos a passar. Não me apetecia comer, não me apetecia falar com ninguém. Só que queria que corresse tudo bem. Era só isso. Já nem pensava como seria o primeiro banho, se lhe vestia a primeira roupa ou se mudava a primeira fralda. Só queria que corresse tudo bem. Tinham-me dito que demorava cerca de 30 minutos. E quando chegou as 14h25 já tinha que controlar a respiração. Qualquer pequeno barulho ou o movimento no elevador me faziam pensar: “é agora!”. Mas todos os barulhos foram em vão. Até que, muito tranquilamente e fora do meu ângulo de visão, oiço uma voz desconhecida, de alguém que aparentemente me estava a ver. Baixinho, mas sem esconder a voz, oiço: “parabéns”. A activação do meu cérebro não estava a funcionar em pleno. Pensei: “não vejo ninguém, será que é para mim?”. Levantei-me, vejo que era o pediatra que ia a entrar numa sala. Pergunto: “correu tudo bem?”. Ao que ele responde: “sim, está tudo bem. A mãe também está bem”. Mais aliviado e com vontade de lhe perguntar como era a minha filha, só lhe devolvi um sincero obrigado. Voltei a sentar-me. Já me conseguia rir levemente e já não olhava para o relógio. A sala continuava em silêncio. Passados cinco minutos, oiço umas rodas a lutarem contra o chão. Aí não tive dúvidas. Era a minha filha que vinha aí. Levantei e andei em direção ao som. Num ápice vi a enfermeira e uma espécie de incubadora que mais parecia uma televisão dos anos 80. A enfermeira assim que me vê, ri-se para mim e diz: “venha ver a Alice”. Bem, o tempo congelou. Consigo recordar todos os segundos do primeiro olhar que troquei (bem, na verdade, acho que ela ainda não me conseguia ver) com a minha Alice. Voltei a perguntar à enfermeira: “correu mesmo tudo bem? A Liliana está bem?”. “Sim, correu tudo bem. A incubadora é procedimento normal em todas as cesarianas. E mãe está bem.”. O meu suspiro e ar de alivio devem ter servido como um gigante obrigado. A enfermeira volta a falar comigo: “a Liliana vai ter que ficar cerca de 2 horas no recobro, vou pesar e vestir a Alice, e já o venho chamar”. Voltei a ficar sozinho. Desta vez não consegui ficar quieto. Andei, ri e chorei. Só pensava na carinha da minha Alice, que corria como loop na minha cabeça. Também pensava na minha Liliana, tentado, quase em jeito telepático transmitir-lhe que estava tudo bem com a Alice e que iria cuidar bem dela. 10 minutos passaram-se e vem uma auxiliar chamar-me. “Venha daí cuidar da sua filha”. As salas da maternidade estavam vazias. Todas as “colegas” do dia da Liliana já tinham os partos tratados. Entro na sala e lá vem a Alice no colo da enfermeira, que nem me deu hipótese de escolha. “Aqui tem a sua Alice, cuide bem dela e se precisar de alguma coisa avise”. “Daqui a 2 horas voltamos com a Liliana”. A minha filha tinha 20 minutos de vida e ali estava eu com ela, no meu colo, sentados no banco da sala 3. Aquela coisa do amor imensurável tinha começado ali. Tudo o que eu imaginei e que me contaram durante a gravidez, quase tinha perdido todo o sentido. Existem coisas indescritíveis e esta é sem dúvida uma delas. A minha Alice vinha muito perfeitinha. Sim, eu sei que nunca vou conseguir ser imparcial. Não me levem a mal por isso. Estava com o seu vestido verde água e com o seu gorro a combinar, que eu a Liliana tínhamos comprado com todo o carinho e com o mesmo carinho a tínhamos eleito como a primeira roupa da nossa filha. O tempo passou como um flash. Na primeira hora a Alice, sempre de olho aberto, esteve sempre acordada. Agarrou-me o dedinho (mais uma lágrima), notava-se que estava a pensar: “mas que raio aconteceu”. Mas manteve sempre a serenidade. Estive sempre a falar com ela. Disse-lhe mais 1000 vezes que gostava muito dela e que a mãe Liliana estava a faltar ali. Na segunda hora a Alice adormeceu. Para mim (sempre para mim) era a coisa mais fofinha do mundo. Sem a querer chatear muito, tentava ver todos os cantinhos do seu minúsculo corpo. Tinha a minha filha ao colo, sentia-me a navegar nas nuvens. A minha filha.
Passadas as duas horas de “namoro”, entre pai e filha. Voltei a ouvir umas rodas a moverem-se. Era a mãe Liliana. Alice dentro do berço, pai na condução, juntos caminhámos para mais um grande momento. Enfim, estávamos os três juntos. Só queria abraçar as duas e dizer-lhes que gostava muito muito delas. Estava a rebentar de feliz. Pela Alice, sobretudo, mas também de alivio por ter corrido tudo bem. Sentia que estava a começar a nossa grande viagem. A mãe Liliana ainda não estava no seu melhor, mas depressa avisei a pequena Alice que a mãe Liliana iria precisar muito de nós. E assim foi.
A Alice, felizmente, nasceu saudável, com 3,100 kg de coisas boas. Linda (sim, eu sei, sou um pai babado) e desde a primeira hora que parece uma mini fotocópia da mãe (resta-me esperar que tenha o feitio do pai). Muito tranquila, até a chorar era fofinha. Só tivemos um pequeno problema com ela. A coisa da amamentação foi, digamos assim, um processo complexo (felizmente ultrapassado). Sinto-me capaz de escrever um livro sobre isso, tantas foram as horas, tantas foram as tentativas, muitas delas com criatividade a transbordar (quase só faltou meter a Alice a mamar de cabeça para baixo). Neste processo e em quase todos os outros, relacionados com a gravidez, com o parto e com o pós-parto, a team do Hospital de Abrantes foi maravilhosa. Foram extremamente generosos e profissionais connosco. Juro que até fico como aquela música do Bonga (com uma lágrima no canto do olho), quando recordo tudo o que fizeram por nós durante a nossa estadia (de uma semana) no hospital. Os médicos foram muito bons e as auxiliares umas fofinhas, mas as enfermeiras merecem o destaque especial. Merecem o céu e levam a minha gratidão eterna. Tecnicamente, é relativamente “fácil” cumprir, mas lado o humano e a sensibilidade com nos tocaram acredito que não esteja ao alcance de todos. Muita gente torce o nariz (eu admito que também eu já o fiz, e até pensamos em ter a Alice no privado) ao hospital público, mas muitas vezes só quando passamos verdadeiramente pelas situações é que conseguimos dar o devido valor. Gosto da Alice de uma forma que não consigo adjectivar. Quero o melhor (do melhor) para ela. Não acredito que pudesse ter sido melhor tratada em outro lugar. Acho que este é o melhor elogio que a posso deixar à maternidade do Hospital de Abrantes. Se eu e a Liliana pensarmos no segundo filho, nem sequer existe espaço para pensar onde ele(a) irá nascer.
A Alice teve alta logo ao terceiro dia de vida, mas como as análises da mãe Liliana ainda não estavam no seu melhor, só voltámos os três para casa no final de uma semana. Foi muito bom e também doloroso. Voltar para casa, sozinho, sem as minhas meninas custou. Sempre que podia, durante essa semana, ia dar o banho à Alice às 9h30, depois ia almoçar, voltava às 14h e muitas vezes só saia do hospital por volta das 23h. Mas, como uma enfermeira dizia: “vocês já gostam muito da Alice, assim, na dificuldade ainda vão gostar mais”. Não sei se foi por isso. Acho que gostar mais é impossível.
Felizmente a mãe Liliana melhorou e ficou ainda mais bonita (sim, também me pareceu ser impossível, mas é verdade). No final de uma semana de pequenas separações voltámos os três para casa. Hoje a minha Alice já tem 15 dias e separar-me dela durante 1 hora é doloroso. Muitas vezes, antes da Alice nascer, disse que muitas vezes encontra-se a perfeição em pequenos momentos. Agora, para mim, essa afirmação ainda faz mais sentido. Basta ela estar a dormir no meu colo. Juro que, neste momento, nada me faz mais feliz.