Entre os dias 8 e 15 de Setembro fiz o Caminho Português de Santiago a pé entre Valença do Minho e Santiago de Compostela. Foi uma experiência muito rica e inesquecível. Aqui fica a minha experiência completa, uma compilação dos relatos diários que fui escrevendo ao longo dos dias (e mais umas coisas).
Dia 0 – Porto
É isso. Neste momento estou no Porto (essa bela cidade), amanhã bem cedo apanho um comboio para Valença do Minho e aí começo a minha jornada a pé (sim a pé) até Santiago, pelo mítico Camino de Santiago (essa verdadeira instituição).
Não é a primeira vez que faço este caminho, mas é a primeira vez que o faço a pé (já o fiz de bicicleta). Estou (mesmo agora) a passar pela fase de ansiedade pré-viagem (calma que não é nenhuma doença!! 🙂 por mais que viaje, acontece sempre, acho que ainda bem), onde passo o tempo a antecipar o que vai acontecer (provavelmente hoje vou sonhar com o camino 😉 ).
Este caminho tem algo mítico, não é o mais bonito, não é o mais fácil, não é mais duro, mas é especial. Talvez inspirado pelas lendas ou pelas histórias de outros que fizeram o caminho, ou talvez por algo que não se consiga explicar. Sinto, e ainda nem comecei, que estou numa jornada especial (e até nem é a primeira vez que o faço). Saí de comboio do Entroncamento e calhou-me em sorte a companhia de um jovem de 80 anos professora de história, assim que lhe disse que ia fazer o camino, um brilho gigante (quer dizer gigante não, diferente) soltou-se no seu olhar, não era um brilho de “este é maluco”, um brilho de “isso é especial”. Lá me contou 300 histórias relacionadas com o camino. Assim que “aterrei” na estação de São Bento, no Porto, fui até à Sé para comprar a credencial de peregrino (para ter acesso aos albergues e obter a compostela (diploma) no final), na minha mochila levo uma concha (vieira), símbolo do camino, e não é que um senhor, que ainda não percebi (e nunca vou perceber) de que país é, mas num espanhol macarrônico (tão a ver que não percebi quase nada, só abanava a cabeça) me deu um alto comprimento, só percebia “camino, camino, camino”, quase que parecia que estava que eu estava a ir para a guerra. Enfim coisas deste caminho, que o fazem, lá está, especial.
Onde dormi: Bluesock hostel – Porto, Praça da Ribeira
Dia 1 – Porto – Valença do Minho – Porriño
Hoje foi um dia de loucos (deu para ver que o coração estava a trabalhar bem). Comecei o dia às 7h (não dormi quase nada porque o colega do beliche ao lado passou a noite a tentar imitar (muitas vezes conseguiu) o barulho de um camião a descarregar pedra (a ressonar como nunca ouvi 😯)), saí do hostel (Bluesock, muito bom!) caminhei para a estação de São Bento, aí apanhei o comboio para a estação de Campanha e aí iria apanhar o comboio para Valença. Tudo tranquilo até aqui. Agora o momento chave do dia: entrei o comboio, como faltavam 10 minutos para partir resolvi sair para tirar uma foto com a GoPro, não tinha bateria, voltei a entrar para seguir viagem (já estava sentado), fui à minha mochila para tirar o portátil para carregar a GoPro durante a viagem, e… tão mesmo a ver o que aconteceu….o portátil não estava lá!!! 😯 Faltava 1 minuto para o comboio arrancar e não podia deixar o portátil para trás (depois como é que escrevia no blog 😉), sai do comboio liguei para o hostel, o portátil estava lá (que grande cabeça de atum que eu sou), apanhei um comboio para São Bento, voltei a ir a pé para o hostel e recolhi o portátil. Problema: comboio para Valença só amanhã (ainda pensei adiar um dia e ficar no Porto mais uma noite). Uma pesquisa rápida, na procura de alternativas, um autocarro espanhol a sair na avenida dos aliados para Vigo, nem pensei muito mais, comprei! Toca a fazer mais uma corrida até à avenida dos aliados, apanhei o autocarro e siga para Valença com a bagagem toda.
Cheguei a Valença às 12h20, com o objectivo de terminar o dia em Redondela (sabia que iria ser difícil, mas tinha de tentar). Assim que o autocarro parou, saí disparado em busca de setas do caminho (o terminal fica um pouco afastado do centro). Lá apanhei as setas, que me levaram para a fortaleza e centro histórico de Valença. Uma boa maneira de começar, é muito giro. Segui em direção a Tuí, atravessando o rio Minho pela mítica Ponte Internacional. Ia a todo o gás, sentia-me bem e motivado. Apesar do passo acelerado dava para aproveitar o caminho, o centro histórico de Tuí (muito bonito), os bosques a seguir a Tuí, pequenas povoações e o gás todo nas partes de estrada. Ia com a cabeça em Redondela, era o que tinha programado antes dos percalços da manhã, e segui o plano (mas mais depressa).
Mas o caminho não é dado a planos rígidos, e na vida não se deve tapar um buraco cavando outro ainda maior. O caminho é para se viver, para se sentir, sem pressa de chegar. O caminho, especial como é, encarregou-se de me “dizer” a parvoíce que ia a fazer. Quando ainda estava fresco, passei numa ponte pequenina, com belo riacho, numa zona cheia de sombra, parei dois minutos a correr, sem aproveitar condignamente o local. Depois passei por um casal de meia idade todo sorridente. Percebi estavam a ler passagens de um livro sobre o caminho, passei por eles tipo flash, disse: “buennn camiiinnno” (ia com pressa, mas não perdi a educação 🙂 ) e quando eles me devolveram o comprimento, já devia de ir 50 metros à frente deles, tipo queniano na maratona. Passados uns minutos, pensei: “mas que raio estás tu a fazer!?”. O caminho não stress, não é pressa. O caminho faz-se caminho, com calma, com leveza, com o botão da absorção ligado. Estava a fazer tudo ao contrário. A manhã complicada, não justifica tudo.
Eu fiz o click, e finalmente entrei no caminho, e logo em seguida foi o caminho a dizer-me que não era assim (a versão corrida). Levei uma marretada das grandes 🙂 . A correria e preocupações da manhã, a parvoíce inicial da parte, e a conjugação das duas coisas fez com me alimentase e hidratasse mal, quase com zero paragens em 20km (com uma mochila grandota nas costas). Os últimos quilômetros até Porriño foram em arrastão, mas podia com as pernas. Quando fiz o click, antes da dor nas pernas, já tinha decidido ficar em Porriño e ir com mais calma. Mas mesmo que não tivesse decidido, era impossível fazer mais 19km até Redondela. Era meia noite e ainda não tinha chegado lá.
Chegado ao hostel, banho, halibut, jantar, chi chi e cama.
Amanhã vai ser com calma e a sentir os cheiros até Redondela. Já esqueci o que tinha planeado. Vou levantar quando tiver que levantar (ter tempo de ver se não deixo nada para trás 😉 ), para quando tiver que parar e chegar quando tiver que chegar.
Onde dormi: Albergue Camino Portugués, Porriño
Dia 2 – Porriño – Redondela
Após um dia cheio de peripécias, de querer “feito parvo” fazer o caminho à pressa e de ter mudado o chip a meio para o modo “isto é o caminho de santiago, é desfrutar”, hoje o dia foi o que se esperava, tranquilo. Fiz os cerca de 20km entre Porriño e Redondela na maior das calmas.
Levantei-me às 7h30 e fui o último a sair do albergue, a maior parte da malta às 6h já estava em pé. Se soubessem que ontem comecei a andar quase às 3h da tarde, era expulsão automática dos caminhos de santiago 😉 . Comecei a andar perto das 8h, em modo visão lusco-fusco, fruto da neblina que quase nunca abandonou o dia. Quase não vi viva alma, a essa hora, em Porriño, tirando alguns pequenos grupos de peregrinos.
O caminho foi quase todo feito em estradas secundárias, tirando belíssimas (pequenas) passagens por bosques quase que tirados de filme. Destaco a ainda a pequena localidade de Santa Eulália de Mos, uma verdadeira aldeia peregrina.
Em modo devagar/devagarinho demorei cerca de 5 horas a fazer esta jornada, parei diversas vezes e comi mais durante estas 5h do que durante o dia todo de ontem. Hoje, por estar a andar a horas decentes, cruzei-me com vários peregrinos, das mais diversas nacionalidades, curiosamente não me cruzei com nenhum português (quer dizer não me cruzei com nenhum a andar, no albergue onde estou, a malta de Portugal esta em maioria). É sempre curioso, os pequenos diálogos no caminho, a maior parte das vezes um de onde és e para onde vais, mas sempre com um espirito de companheirismo entre desconhecidos difícil de igualar. Também curiosos, são os quilômetros que em silêncio percorremos ao lado de outros peregrinos, em que para fazer (inventar) um filme sobre a vida deles, sobretudo no solitários, “o que ele está aqui fazer?, “está a fugir de quê?”, ao mesmo tempo também penso que “que filmes estarão eles a fazer sobre mim?”. Muito provavelmente só lhes deu na cabeça irem fazer o caminho ou tiveram um primo que fez e gostou. Enfim coisas do caminho.
Ah!Já tenho a primeira bolha. Estive quase a fazer uma queixa aos donos do caminho de santiago “o que vem a ser isto, fazer os caminhos sem bolhas!?” 😉 mas pronto, lá apareceu.
Ontem, no dia de doidos, alguém (muito sábio) comentou um publicação minha, assim: “caminho que nem um velho e chegas a Santiago como um novo”. Foi o que fiz hoje e vai ser o que vou fazer nos restantes dias.
Onde dormi: Casa da Herba, Redondela
Dia 3 – Redondela – Pontevedra
Dormi mal, mas acordei bem. Entre o ressonar dos vizinhos do lado (um velho clássico do caminho) e os barulhos (gritos) vindos do exterior protagonizados pelos jovens de Redondela (típicos de quem bebe mais de 5 cervejitas 😉 ), numa animada noite de sábado, acho nunca consegui dormir mais de 1 hora seguida. Quando embalei finalmente, os meus colegas deram o toque de alvorada, entre arrumos e partidas. À 7h15 estava pronto para começar a caminhada até Pontevedra.
Era noite quando comecei a caminhar, estava bem disposto, mas a noite mal dormida ninguém me tirava. Desta mistura tive alguma dificuldade em encontrar as setas amarelas no escuro (porque queria seguir mesmo o caminho), entre uns para trás e para a frente, lá engrenei e acho que não falhei mais nenhuma. É engraçado caminhar pelas ruas desertas e ver o dia a nascer, não digo o sol, porque com a neblina nem o vi antes do meio dia.
Mal saí de Redondela entrei logo num bosque muito bonito, o que foi uma constante ao longo deste percurso. A mistura das árvores de grande porte, com neblina da manhã, davam-lhe um ar de encantado, quase ao melhor jeito de filme do Senhor dos Anéis. Diverti-me imenso, ia mesmo satisfeito da vida. Sentia-me abençoado (sem qualquer tipo de referência religiosa) por estar a fazer caminho tão especial e tão bonito. Outro ponto curioso e interessante, ao longo do dia de hoje, foi a presença de outros peregrinos no caminho. Cruzei-me com mais do dobro dos peregrinos, em comparação com os dois dias anteriores juntos. Apesar de ter caminhado quase sempre sozinho, falei com muitos deles, malta dos Estados Unidos, Australia, Brazil, Irlanda, Hungria, Itália, Japão, Alemanha, Espanha e claro, Portugal, isto entre outras nacionalidades que não consegui descortinar. Muito bom.
Ia devagar, mas estava a ser tão bom, que até estava a sentir que estava a passar depressa demais. Num ápice estava na bonita localidade de Arcade, a capital das Ostras, onde tive o primeiro encontro com a Ria de Vigo. Passei a ponte Sampaio, embrenhei-me pelas ruas de Arcade e “desaguei” mais uma fez num bosque. A diferença deste, em relação aos anteriores, era piso ser maioritariamente em pedra, e a subir.
Rapidamente me aproximei de Pontevedra, e a faltar sensivelmente 4 quilômetros, fiz uma coisa que raramente faço, escolhi um caminho alternativo ao original. Com uma maior extensão, junto ao rio, fugindo aos últimos quilômetros em alcatrão. Não sei se foi pela falta das setas, se pelo percurso em constante zigue-zague, se pela noite mal dormida ou se simplesmente porque tinha de ser assim, levei uma marretada no corpo, que cheguei a Pontevedra com dores no corpo desde as orelhas aos pés (aqui a dor era mais forte 😉 ). Cheguei ao albergue sensivelmente às 14h00 e depois de um belo banho, estava pronto para dormir. Apesar de o meu corpinho só pedir cama, disse-lhe “não, vamos almoçar ao centro histórico”. Mais 1,5 km para lá e a mesma dose na volta. Valeu a pena, o centro histórico de Pontevedra é lindíssimo.
Onde dormi: Albergue Aloxa, Pontevedra
Dia 4 – Pontevedra – Caldas de Reis
O meu dia começou por volta das 7h00. Mais uma vez fui um dos últimos a sair do albergue. Mais uma vez comecei a caminhar de noite. Até me levantei bem, levando em conta a dor nas pernas que tinha ontem (acho que foi por ter sido de longe a noite em que dormi melhor).
Esta etapa (de cerca de 23km) começou de forma majestosa. Como o albergue onde fiquei fica na zona sul de Pontevedra, junto à estação de comboios, o caminho levou-me a atravessar toda a zona histórica de Pontevedra (com particular destaque para a Igreja de la Peregrina), que é lindíssima a toda a hora, mas que com a luz do nascer do dia e com pouca gente na rua (em silêncio quase total), ganha uma graciosidade diferente. Passada Pontevedra, finalizada por uma ponte com vieiras (símbolo do caminho) nos seus arcos, entrei por caminhos rurais, durante 3 ou 4 quilômetros, encontrando muito menos peregrinos no caminho, em relação ao dia anterior (penso que seja por em Pontevedra existir uma derivação para um novo caminho (chamado de espiritual), que liga Pontevedra a Padrón, sendo os últimos 28km feitos de barco).
Depois desses primeiros quilômetros de beleza relativa, levando em conta o que já tinha visto no caminho. Voltei a entrar por caminhos mágicos, onde o verde impera e o sol não entra. Musgo por todo o lado, riachos a atravessarem o caminho, pequenas pontes que parecem ter sido construídas por duendes, enfim um verdadeiro parque de diversões para quem gosta de caminhar pela natureza. Nisto passaram-se cerca de 10km e estava na altura da primeira paragem técnica do dia (para o tradicional menu bocadillo e coca cola). Nem sei o nome da pequena povoação, mas como era a primeira do dia, estavam lá muitos peregrinos. Na saída da tasca, comecei a caminhada ao mesmo tempo que cerca de 10 peregrinos, entre os tradicionais “buen camino” alguém foi mais longe e perguntou quase a todos de onde eram e como se chamavam, funcionou como desbloqueador e seguimos juntos o resto do caminho até Caldas de Reis.
No grupo, tipo Senhor dos Anéis, todos éramos diferentes, eu em representação de Portugal, um casal muito simpático das Filipinas (mas vive há muito no Canada), umas irmãs da Hungria, um rapaz da Polónia, duas velhinhas alemãs e mãe e filho ingleses. Foi completamente diferente. O caminho tem destas coisas, momentos em que nos pede para seguirmos sozinhos e momentos para partilhar experiências. Após ter seguido sempre sozinho, este momento de partilha soube-me muito bem. Falei sobre Portugal com todo o orgulho que me caracteriza, ouvi histórias sobre os países de cada um e sobretudo partilhámos o que estava a ser o caminho para nós. Um queria fazer uma tatuagem de uma seta amarela do camino, as irmãs começaram o caminho em Tomar, caminham há mais de 15 dias, por isso tinham muitas histórias para contar (falaram muito bem do povo português, dos mais amigáveis que já conheceram…com muito orgulho ouvi), o casal filipino, deve ter ganho rugas na cara de tanto que se riu (acho que este foi o melhor momento do caminho para eles, pois acho que não estavam a gostar muito), as velhinhas alemãs seguiam com a rigidez alemã quase sem falar, e a mãe e filho, seguiam de uma forma estranha, o rapaz tinha cerca de 15 e acho que o caminho ainda não faz bem o estilo dele. Enfim entre conversas de circunstância, normais para quem se acabou de conhecer, e outras mais profundas, criou-se uma empatia, e esta partilha conseguida, com uma paisagem vinhateira como pano de fundo, levou a que caminho passasse com uma leveza diferente, foi mais rápido e menos doloroso. Quase que fiquei espantado ao ver Caldas de Reis, tipo “já está? já chegamos?”, ao contrário dos dias anteriores, em que levei sempre com uma “marreta” antes de chegar.
Provavelmente nunca mais nos voltaremos a fazer. Mas sempre que recordamos o camino (lembrança reforçada se não o voltarem a fazer), vamos lembrar deste dia, deste grupo e desta partilha. Coisas do caminho.
Amanhã o dia vai terminar em Pádron (a terra dos pimentos) e vai ser o penúltimo dia de caminhada. Parece que amanhã vou apanhar, espero que poncho que comprei numa loja dos chineses em Pontevedra aguente com ela. 😉
Onde dormi: Albergue O Cruceiro, Caldas de Reis
Dia 5 – Caldas de Reis – Padrón
O dia começou de uma forma bastante atribulada, com o meu vizinho de cima (o que dormia na cama de cima no beliche), um espanhol com cerca de 60 anos, chamado Xavier, a perguntar-me às 6h00 se tinha visto o telemóvel dele. Só apeteceu dar-lhe com o meu (na cabeça dele). O Javier não tem bem o estilo peregrino e assim que chegou ao quarto a primeira que disse foi perguntar-me se eu ressonava, num tom não amigável. O Javier também tinha a particularidade de não entender uma única palavra que eu dizia, seja um portunhol, em português ou em inglês, nada. Acho que não fez (nem vai fazer) nenhum amigo no caminho.
Passado este percalço matinal, levantei-me por volta das 7h15. Estava a chover e ainda era noite. Ao equipar-me para começar a caminhada rasguei logo parte do poncho (comprado nos chineses de Pontevedra) que me iria “abrigar” da chuva. Não vi esse momento como um bom sinal, aquele sinal de fiabilidade. Lá segui a caminhada em direção a Padrón, com noite e chuva.
A chuva não estava forte e até se tornava agradável. Quer dizer, agradável se calhar é demasiado forte, tornou o dia diferente e isso foi positivo. Tornou a paisagem diferente, intensificou os cheiros e tinha um farda diferente, um “belo” poncho azul. O percurso começou bem engraçado, quase sempre por terra batida. Parei num café quase a meio do caminho e lá encontrei os meus comparsas de ontem. Mas entre sorrisos e perguntar se estava tudo bem, cada um seguiu o seu caminho separadamente. Hoje queria andar sozinho. Ainda bem que assim o fiz. A última metade do percurso foi de uma beleza extraordinária. Quase que aproveitei cada passo, para completar tamanha beleza, para sentir os cheiro de terra molhada, para passar a mão pelo musgo húmido, para ouvir o correr da água nos ribeiros próximos. Soube-me muito bem, passar por troço completamente sozinho, com ele só para mim. Passado este cenário de filme, foi seguir o caminho entre vinhas até Padrón. Cidade interessante, bem conhecida pelos pimentos com o seu nome.
Já depois do banho no albergue, tive de ir comer os tais pimentos padrón (em Padrón a experiência é outra) e um polvo à moda da Galiza. Curiosamente, na mesa ao lado, sentaram-se um grupo de 4 que caminham juntos e com quem me vou cruzando desde Tuí (ou seja, desde o início) e temos ficado quase sempre nos mesmos albergues. Até agora tinham sido uns buen caminos, mas quase a chegar a Santiago tínhamos de saber mais qualquer coisa uns dos outros. Ficamos à conversa depois de almoço. Duas irmãs de Sevilha, mais ou menos da idade da minha mãe, Mariola e Maricruz, o Pedro também da mesma idade, de Granada, e o quarto elemento, a improvável a Natalie (não sei se é assim que se escreve) uma simpática alemã da minha idade. O mais curioso deste grupo é que seguem há 5 dias (sempre) juntos, sem a Natalie falar espanhol e sem os espanhóis falarem inglês. Mas parecem entender-se às mil maravilhas. Falei sobretudo com a Mariola, que tem um filho da minha idade. Essa coisa de que os espanhóis são antipáticos é mito. Falei de Portugal, falei da minha vida, mostrei-lhe fotografias da Liliana. Ela falou-me dos filhos, que começou a estudar psicologia na Universidade da Sevilha, que tinha de trazer a minha mãe para fazer o caminho, e mais umas 300 coisas. Tudo em português/espanhol. Gostei muito deste bocadinho.
Agora voltei ao albergue para a tradicional siesta (tento de seguir os costumes locais 😉 e também estou um bocado cansadito 😉 ).
Amanhã é último dia desta jornada, se tudo correr bem, chego a Santiago após um caminhada de 25km.
Onde dormi: Albergue Corredoiras, Padrón
Dia 6 – Padrón – Santiago de Compostela
Esta foi a etapa mais longa (cerca de 25km), a mais emocionante e a que merece a descrição mais curta. Porquê? Porque todo o caminho é passado a pensar numa só coisa: “chegar a Santiago, chegar a Santiago”.
Mesmo que o inconsciente te diga para fazeres outra coisa, não há outra hipótese. Parece que Santiago tem uma força qualquer, que quando te aproximas dele, te absorve por completo. Só hoje olhei com atenção para os marcos do caminho que indicam os quilômetros. Nos outros dias quando dizem 118.583 ou 72.459, pouco dizem, mas começas a ver 10.429 ou 3.245 começas a ver que zero se está a aproximar e que finalmente (ou não 🙂 ) estás a chegar a Santiago.
Comecei o dia por volta das 7h45 e mais uma vez fui o último a sair do albergue. Segui quase todos os quilômetros sozinho (quer dizer vou sempre apanhando gente, disse para aí 500 vezes “buen camino”), maioritariamente por estradas de campo e pequenas aldeias (muito menos terra batida que nos dias anteriores). A excepção foi feita nos últimos quilômetros, onde caminhei e conversei, primeiro com um casal muito simpático de brasileiros, o Luan e a Joana, de Minas Gerais, mas a fazer um doutoramento em Lyon. Quando perguntei ao Luan como estava a ser, ele respondeu-me: “puxa cara, tou muito cansado, mas acho que amanhã vou sentir falta” (tão verdade Luan! coisas estranhas que o nosso corpo e mente pede). E já na última fase, acompanhei um grupo de 4 espanhóis, liderado pelo Matias, bancário de Valência, que seguia acompanhado pela sua esposa e cunhados. Uma conversa muito boa sobre o que é isto do caminho e o que o torna tão especial.
Mas a dado momento voltei a ficar sozinho e assim segui até à Catedral na Plaza del Obradoiro. É daqueles momentos difíceis de explicar. Parece um bocado cliché, mas é com o máximo de sinceridade que o digo, só vivendo. Senti um misto de alegria por chegar, por chegar bem, por chegar mais rico, e ao mesmo tempo uma certa nostalgia pelo que vivi neste últimos 6 dias a caminhar. Existe algo de místico neste caminho. Provavelmente, facto derivado da sua carga histórica milenar.
Não sou muito religioso, apesar de católico e de chamar por Deus de vez em quando. Mas acho que para qualquer um, ao fazer um caminho que tem a história que tem, chegar esta cidade e a uma catedral com quase 1000 (!!!) anos de história, vai mexer um pouco (calma, que acabei de fazer o caminho há 2 horas, ainda estou um bocado abalado 😉 ).
Depois parece um filme a minha chegada. Chego sozinho, tiro umas 57 selfies com a catedral como pano de fundo. Sento-me um pouco, e passados uns 10 minutos, começam a chegar aos poucos pessoas ou grupos, com quem me fui cruzando dezenas de vezes no caminho, muitas vezes sem dizer mais que um “buen camino”. Os brasileiros, os espanhóis de Valença, o grupo de 4 (3 espanhóis e uma alemã, liderado pela querida Mariola), o Juan, um espanhol que cabelo comprido e sempre vestido de preto com quem me cruzei várias vezes e com o Carlos, um espanhol que foi meu vizinho de beliche por 3 vezes (foi dos que mais gostei, ressonar zero). Parecia aquelas imagens no final do filmes, em que mostra os bastidores. Parecia que nos conhecíamos há uma vida. Mas na verdade mal falamos e mal sabíamos o nome uns dos outros. Mas partilhámos o mesmo caminho e sem falarmos, todos percebemos o quanto isso foi importante. No final o Juan, o espanhol com ar rockalheiro, deu-me um abraço e disse-me: “Me alegro de verte aquí”. Foi sincero. Juro que fiquei emocionado (tipo a música do Bonga “tenho uma lágrima no canto do olho” 😉 )
Caminhar até Santiago não é fazer o caminho mais bonito (existem muitos com paisagens mais bonitas), o caminho mais duro (existem outros em que desafio físico é muito maior), não é uma porrada de coisas, mas é provavelmente o caminho mais especial de todos (para mim).
Agora vou descansar um pouco, para depois ver a missa às 19h30. Ahh…hoje não albergue para ninguém!! Tenho um quarto só para mim (sem ter que rezar para que o vizinho do lado ressone), no Hotel Moure (vou tentar deitar depois das 21h30 e acordar depois das 6h30…só para quebrar o ritmo frenético dos caminhos de santiago 😉 ).
Onde dormi: Hotel Moure, Santiago de Compostela
Dia 7 – Santiago de Compostela
O dia seguinte é sempre muito estranho. Não iria fazer 20km a pé, com uma mochila pesada nas costas. Não iria levar ainda noite e provavelmente apanhar chuva. Tudo isto são coisas aparentemente más, mas que no dia seguinte fazem uma falta dos diabos. Os 6 dias do caminho, foram tão intensos que o retomar à “vida normal” é estranho.
Como dormi numa bela cama de hotel (sem ouvir ninguém a ressonar), dormi que nem um anjinho. Levantei um pouco mais tarde que nos dias anteriores. Cerca das 8h00 estava de pé, para tomar o pequeno almoço. Pequeno almoço tomado sem pressa de partir, fazer a mochila, check out no hotel, deixar a mochila na recepção e ir viver um bocadinho de Santiago de Compostela.
Adoro esta cidade, talvez muito por culpa dos caminhos, mas sinto-me tremendamente bem. Gosto muito de perder ruas de Santiago, sempre com a Catedral como referência. Como este caminho foi muito especial, decidi repetir a compostela (diploma), como no dia anterior estava cansado e não me apetecia ficar na fila da oficina do peregrino, aproveitar esta manhã para passar por lá. Parece um papel sem importância, produzido e distribuído de uma maneira industrial. Não tipo Jogos Olímpicos, que te cantam o hino e dão-te não sei quantos abraços na chegada. É mais parecido com o talho, onde tens uma senha com um número para recolher o teu diploma. Mas, mesmo assim, é sempre um momento especial. É sempre um orgulho passear por Santiago com o tubo que carrega a credencial e soltar uns “olha aquele fez o caminho, provavelmente a pé!!” entre o pessoal que chega de autocarro 😉 .
Já de compostela na mão, fui assistir à épica missa do peregrino na Catedral. Sempre à pinha, mas lá consegui um lugar em pé com boa visibilidade. Não sendo muito religioso, fui para mim muito emocionante assistir a esta missa. Acho que faz parte do ritual dos caminhos. Tal como os peregrinos de há 1000 anos não a perderiam com certeza. Faz parte da história e dá, entre a paz e cânticos missais, para pensares o que realmente andas ali a fazer. E depois o botafumeiro, é daquelas coisas que entram naquele campo do “tem que se viver pelo menos uma vez na vida”. Este caminho mexeu muito comigo e confesso que soltei uma lágrimazita.
Depois foi tempo de comprar uns recuerdos, almoçar (uma bela tortilha com um albariño), dar mais unas voltas, voltar ao hotel para recolher a mochila e andar mais um pouco (de mochila às costas) até à estação de autocarro. Para mim o autocarro é a forma mais prática e confortável para sair de Santiago. Segui de autocarro até Braga e aí apanhei o comboio para casa.
As personagens do meu caminho
Posso fazer o mesmo caminho (de Santiago) 100 vezes, a paisagem (à partida) será a mesma, mas a história será sempre diferente. Existem dois grandes culpados para isto acontecer: o primeiro será o “estado” da nossa cabeça, e a predisposição para fazer o caminho; o segundo serão as personagens (pessoas) que iremos encontrar ao longo do caminho, que moldarão a nossa história de uma diferente forma.
Senti um necessidade gigante de fazer este caminho (de Santiago) sozinho. Por várias razões. Queria ir sozinho e caminhar a maior parte do tempo sozinho. Já viagem imensas vezes sozinho, muitas de bicicleta, mas nunca numa longa caminhada e em completa autonomia (aka de mochila às costas). Apesar de esta vontade se ter cumprido e de apenas a espaços ter convivido/caminhado com outros peregrinos, esses momentos foram de tal maneiras marcantes, que ao mesmo tempo digo que o mais importante deste caminho foi tê-lo feito sozinho e as pessoas que nele encontrei. Estranho, não!? Ainda não encontrei uma explicação clara para isto, não sei se foi o acaso, ou se por e simplesmente, não tem que existir explicação.
Algumas (pessoas) falei durante horas (o tempo passa devagar no caminho), outras durante poucos minutos, outras apenas disse “bon camino”, e muito poucas nada disse, apenas observei. Algumas criei um laço de amizade forte (apesar da efemeridade do momento), outras não gostei, outras admirei e outras simplesmente caricaturei. Com todas estas diferenças, sinto-me tão feliz com o que encontrei neste parte (a das pessoas) importante do meu caminho. Muitas ri-me sozinho, quase me sentia abençoado, por tão preciosos momentos.
Numa conversa boa com o Matias (que vão conhecer mais à frente), já com Santiago de Compostela à vista, sendo essa a nossa primeira conversa no caminho, ele me disse: “sempre te achei estranho, cruzei-me contigo dezenas de vezes, umas vezes seguias com um (pensava que eram amigos), depois já te via com outro grupo que nada tinha a ver, depois via-te sozinho…depois percebi que seguias completamente sozinho. No início pensei e disse que quem faz isto sozinho e num país que não é o dele é completamente maluco, mas agora percebo que estas mais são (de sanidade mental) do eu.” O Matias tem cerca de 50 anos e é bancário em Valência. Não uma definição do ir sozinho, mas diz muito do que foi o meu caminho.
Por ser tão importante, vou escrever um pouco sobre todas as pessoas que me marcaram (cruzei-me com muitas mais) nesta tão importante caminhada. Algumas não sei o nome e de muitas não sei nada, mas foram muitos importantes para mim.
Grupo Mariola, Maricruz, Pedro e Nathalie – o grupo mais engraçado que conheci no caminho. A Mariola e Maricruz são irmãs, que vivem numa vila bem perto de Sevilha, tipicamente espanholas e mães de filhos. O Pedro, espanhol de Granada, com cerca de 60 anos. A Nathalie, alemã, da minha idade (31 anos) e pessoa bastante viajada. O mais engraçado deste grupo, é que sempre seguiu junto, sem se conhecerem à partida, e com o particular facto de os 3 espanhóis não falarem nenhuma língua além do espanhol, e da Nathalie não falar espanhol. Sim, é mesmo isso, mas sempre se entenderam e era notória a cumplicidade entre eles. Parecia a história do mogli (bem representado pela Nathalie), que pensava que era um lobo (neste caso ela “pensava” que era espanhola). Este foi sem dúvida o grupo que mais me marcou. Principalmente a Mariola e a Nathalie. A Mariola pelas semelhanças com a minha mãe. Andava sempre preocupada se todos estávamos bem, se nos alimentávamos bem, enfim, coisas de mãe. Uma grande querida e criei uma grande empatia por ela (acho que todos os que se cruzaram com ela sentem o mesmo). A Nathalie, em primeiro lugar admiração por seguir neste grupo todas as dificuldades de comunicação e diferenças culturais, acho que não é para qualquer um e depois por me rever um pouco nela, há uns atrás. É assistente social na Alemanha, mas acho que também anda há procura de um escritório lá fora.
Com este grupo, com quem me cruzando desde os primeiros quilómetros, tive um relação em crescendo, evolui de um bon caminho, para uma amizade sincera, daquelas se sentem em pequenos gestos. Tive imensa felicidade de chegar a Santiago quase ao mesmo tempo que eles, soube muito bem abraçar esta gente no final. Guardo imensas pequenas histórias deliciosas, mas revelo duas em particular da Mariola. Uma quando a Nathalie me disse em Padrón que queria chegar a Santiago com a irmãs e com o Pedro. Eu, no final, quando estava com eles já funcionava um pouco como tradutor. Quando disse a intenção da Nathalie, quase a Mariola ficou em lágrimas. Acho que sem se aperceber e carregada de orgulho, disse isso a toda a gente que encontrou. Outra história, depois do abraço de chegada a Santiago, combinamos “cenar” (aquilo que os espanhóis chamam jantar, que para mim é beber cerveja) juntos (um grupo de 10 no total, que coincidiu no final em Santiago). Passadas 4h da chegada, voltamos à Obradoiro (a praça principal), uns com cara de sono, outros com cara de peregrino mas de banho tomado e a querida Mariola, acabadinha de chegar do cabeleireiro 🙂 . Delicioso.
Juan Luis del Pozo – conheci o Juan no final do meu primeiro dia de caminho. Ficou no beliche ao lado do meu no albergue em Porriño. O Juan é alto, tem o cabelo comprido e veste-se sempre de preto, tipo rockalheiro. Assim que o vi, fiz um daqueles julgamentos automáticos e completamente errados (e primitivos), pelo Juan não preencher nenhuma das tipologias de peregrino, que tipo caderneta, tenho na minha cabeça. Voltei-me a cruzar várias vezes com o Juan ao logo do caminho e foi meu vizinho mais 2 ou 3 vezes em outros albergues. O Juan revelou-se uma jóia de pessoa. Sempre de sorriso na cara e com uma palavra simpática. O Juan chegou a Santiago na mesma altura que eu, apesar de ter sido essa a primeira vez que o vi nesse dia, e protagonizou nesse momento um dos mais emocionantes de toda esta jornada, pelo abraço sentido que me deu, seguido de um sincero “me alegro de verte aquí”. Juro que fiquei emocionado. O Juan tem 37 anos vive em Ávila e é fotografo (curiosamente não o vi a tirar uma única foto no caminho). No final do último dias fomos beber umas cañas.
Irmãs húngaras e rapaz polaco – provavelmente foi com esta malta que mais tempo seguido caminhei. Seguiam no caminho deste Tomar (perto de minha casa). Caminhei com eles até Caldas de Reis, durante cerca de 10kms. Na altura soube-me bem, até aí acho que não tinha falado com ninguém mais de 5 minutos seguidos. Falámos sobretudo sobre Portugal. Como eles caminharam vários dias por Portugal, acho que estavam com saudades e queriam recordar algumas coisas que viveram. As duas irmãs falavam muito e o caminho para elas era muito pouco espiritual. O rapaz polaco, parece-me que vai sair apaixonado do caminho, só não percebi por qual das irmãs 😉 . Nunca mais os vi.
Javier – espanhol, com cerca de 60 anos. Foi a pessoa mais estranha que se cruzou comigo no caminho. A primeira que o vi foi num albergue em Pontevedra, em que antes de um bon camino ou boa tarde, arrancou um “ressonas?”, não muito ao estilo mais amigável de um pessoa perguntar a outra se ressona, por ser um meio a brincar meio a sério “eu ressono, e tu?”. Mas o Javier não, foi logo ao ataque. Para completar a recepção amistosa, no dia seguinte pela manhã, acordou-me às 5h30 para me perguntar se tinha visto o telemóvel dele (!?). Depois disto ainda me cruzei mais umas 50 vezes com Javier, dizia-lhe sempre, no meu melhor galego, “bon camino”, retribuía-me quase sempre um “no intiendo”. Como devem calcular, não fiquei grande amigo do Javier.
Carlos Pineda – espanhol com cerca de 60 anos de uma localidade perto de Valladolid. Baixinho e muito simpático, diz que só lhe falta fazer o caminho da prata, que vai de Sevilha a Santiago. Foi aquele que foi meu vizinho mais vezes nos albergues. Não falamos muito, mas tínhamos (penso eu) grande empatia um pelo outro. Oferecia-me sempre um iogurte no final do dia.
Rapariga russa – muito alta e magra, de passada larga. Muito simpática, sempre de sorriso na cara. Caminhava quase sempre sozinha. Nunca fui além de “bon camino”, mas fiquei grande admirador desta russa. Ao inicio não percebia porque ela se cruzava várias vezes comigo, num dos primeiros ultrapassou-me para aí 3 vezes. Mais tarde percebi o porquê. Parava em catedrais e lugares bonitos, sacava de um caderninho e desenhava o que via com um precisão assustadora. Absolutamente incrível.
Matias, sua esposa e cunhados (irmã da esposa e marido) – fizeram cerca de 30 minutos comigo antes de chegar a Santiago. Falei sobretudo com o Matias, valenciano e bancário com cerca de 50 anos. Muito boa conversa. Começou com um “estás de férias?” ao que respondi “isto é parte do meu trabalho”, contei-lhe a história do Meu Escritório, ele contou-me a sua história. Criámos uma grande empatia logo no momento, daqueles que se pensa, este na vida “normal” facilmente seria meu amigo. Depois da chegada a Santiago, encontramo-nos novamente. Ai falei sobretudo com a simpática cunhada do Matias, acho que curiosa por saber como um pessoa pode ter um escritório lá fora 😉 . Foi curiosa esta conversa, ela disse-me que começou este caminho por influência do cunhado, tipo “vocês vão, nós vamos também”, como se de uma caminhada normal se tratasse. Mas que pelo meio percebeu que fazer este caminho era muito mais do que simplesmente caminhar. Apesar disso, diz que nunca seria capaz de o fazer sozinho, entre aspas chamou-me maluco 😉 . Outra coisa bastante disse-me que falava muito bem espanhol, coisa que nunca esperei ouvir nos dias da minha vida “aprendes-te a falar espanhol na escola ou nas viagens? hablas mui bien!”, ainda olhei para trás para confirmar que era mesmo para mim e no meu melhor portunhol lhe respondi “quien!? yo?! nooo!!” 🙂
Casal de filipinos – simpático casal de filipinos, com cerca de 50 anos que vive há 20 no Canadá. Muito queridos, mas acho que não iam a gostar muito. Muito cansativo, diziam eles. Acho que eles tiraram o “bilhete” para o caminho como quem tira um para a disneyland. Quando assim é a coisa pode correr mal. Caminharam comigo juntamente com as irmãs húngaras. Apenas os voltei a ver na missa do peregrino em Santiago. Alto cumprimento que me deram. Pelo menos chegaram bem.
Joana e Luan – casal de brasileiros, de Minas Gerais, a estudar em Lyon. Muito “bom astral”. Vinham apaixonados pela cidade do Porto (normal 😉 ). Curiosa um das afirmações que o Luan teve para mim, quase quase a chegar a Santiago “puxa cara, tou muito cansado, mas acho que amanhã vou sentir falta” (acho que (quase) todos no caminho sentem o mesmo 😉 ).
Mãe e filho ingleses – mãe com cerca de 50 anos e filho com cerca de 15. Cruzei-me com eles várias vezes, sempre com um silêncio a roçar o assustador. Acho que o rapaz não ia a gostar muito da brincadeira.
“Jovem” italiano de longas barbas – parecia um desenho animado. Este “jovem” bastante peculiar tinha mais de 80 anos, já tinha mais “caminos” que eu anos vida. Falei algumas vezes com ele, sempre perguntado como estava a máquina. Numa das primeiras vezes disse-me, “só não consigo levar a mochila às vezes, de resto está impecável”. Se existisse um bilhete do futuro que diria “com 80 ano estás a caminhar até Santiago”, era compra imediata!!
Francesca – italiana baixinha e gordinha, com cerca de 30 anos. Sempre sempre a rir esta rapariga. Notava-se bem que não era muito viajada e que esta seria uma das suas primeiras experiências em viagens deste tipo. Era muito engraçada a falar, em 30 segundos de conversa falava em italiano, espanhol, inglês e francês, sempre com objetivo de a perceber melhor, a mim só me dava vontade de rir.
Carlos – um dos poucos portugueses com quem me cruzei. De Lisboa, bancário, com cerca de 50 anos. Muito simpático. Meteu logo conversa comigo, no albergue que partilhámos em Redondela. Era o seu primeiro caminho e dizia-me que “era um sonho de criança”. Notava-se a alegria do caminho nos seus olhos. Queira desfrutar tudo. Acho que vai voltar.
Jovem casal de alemães – com pouco mais de 20 anos, nunca os vi a falar com ninguém. Cruzei-me com eles várias vezes e guardo-os na memória, pelos trajes e postura particular. A rapariga, alternava entre as calças de ganga e vestidos de praia, com chinelos (valha-me Deus!! é verdade de chinelos, nem quero imaginar aqueles pézinhos). O rapaz caminhava quase sempre 20m à frente da rapariga, muitas vezes com a mochila apoiada em apenas um dos ombros e com um saco de compras numa mão. Para mim, absolutamente incrível (eu acho que não durava um dia assim 😉 ).
Grupo de portugueses no autocarro de Santiago até Braga – 2 rapazes e 2 raparigas, cerca de 30 anos. Vinha eu ainda meio apanhado, com o vivi no caminho, a tentar encontrar respostas para as sensações do caminho. Onde mal conseguia falar. Este grupo parecia que tinha acabado de sair de Slide & Splash (sim, o parque aquático). Não me julgo melhor do que eles, mas o caminho foi certamente uma experiência diferente para eles.
A chegada de peregrinos a Santiago – existem pessoas que vi a chegar a Santiago, com as quais nunca falei e nunca me cruzei no caminho, nem sei tão pouco, de que caminho chegavam. Mas para sempre vão ficar na minha memória. Tudo isto no dia seguinte à minha chegada (nesse dia não via nada), em que me sentei na praça de Obradoiro junto à Catedral, a ver a malta a chegar. A emoção de muitos na chegada de muitos, lágrimas com fartura e sorrisos à mistura. Muitos abraços a companheiros de viagem que nunca mais irão ver. Revi-me em muitos deles, quase como um espelho (muito engraçado e estranho ao mesmo tempo). Enfim coisas fazem que do caminho (seja ele qual for) um lugar especial.
Chegada a Santiago, da esquerda pra direita: eu, Mariola, Pedro, Maricruz, Nathalie, Juan, Matias, cunhados do Matias e esposa do Matias
O que levei na mochila
Aqui a questão é sempre muito simples. Caminhar durante uma porrada de dias, com a mochila às costas e sem qualquer tipo de apoio logístico, ou seja ninguém para te carregar a mochila (nem que seja por um bocadinho) e levar uns extras. Segredo: levar apenas e só, o que vai ser mesmo necessário. Um pequeno extra que estás na dúvida? Compra no caminho se fizer falta!
A mochila tinha capacidade para 45l e nem a pesei depois de carregada, para não ir a pensar nisso. Para o caminho levei:
- 6 Tshirts – podia ter levado menos, mas tomei a decisão de não lavar roupa..como não iria caminhar 30 dias dava para utilizar uma lavada todos os dias;
- 1 Camisola de manga comprida – para o inicio de caminhada e para a noite;
- 1 Casaco impermeável – daqueles que ocupam pouco espaço, bem fininho, para o caso de chover (como aconteceu);
- 1 Saco (pequeno) com frutos secos – é o que chamo que comida de emergência, para o caso de ficar em fraqueza e demorar a encontrar um local para comprar comida;
- 1 Cantil – ia preso no mochila, para evitar andar com uma garrafa de água na mão. Água é essencial;
- 1 Chapéu – este foi quase sempre na cabeça;
- 2 Calções – uns para caminhar e outros para vestir depois da caminhada;
- 1 Chinelos – essencial, porque os balneários nos albergues são compartilhados;
- 1 Saco-cama – essencial, porque muitos os albergues apenas fornecem um lençol (e se assim for, já é uma sorte) para revestir o colchão;
- Telemóvel, GoPro e Portátil – para mim todos são essenciais. O telemóvel toda a gente sabe para que serve, ainda com a possibilidade de poder fazer uma pesquisa sobre alguma coisa ou consultar um mapa. A GoPro para a documentação fotográfica, para mim é o ideal, pequena, leve e eficaz. O portátil (tenho a sorte de ter um que pesa menos de 1kg), para mim é essencial, porque preciso de escrever, porque caso contrário, era completamente dispensável;
- Carregadores
- Sapatilhas – muitos me perguntam porque levo sapatilhas e não levo botas. A resposta é simples, tenho os pés muito sensíveis e tinha de levar um calçado com que me sentisse bastante confortável. As sapatilhas têm a vantagem de me fazerem menos bolhas, as botas têm a vantagem de minimizar as dores causadas pelo impacto. Na avaliação de prós e contras, levei as sapatilhas. Se fosse para uma caminhada mais longa, levava botas. Isto tudo para os meus pés e porque os conheço bem (cada um sabe o que irá ser melhor para os seus 😉 );
- Navalha – dá sempre jeito;
- Estojo de beleza 😉 – aqui inclui bens de primeira necessidade como escova e pasta de dentes, sabão, desodorizante e lentes de contacto. E também os primeiros socorros e afins, halibut, pensos, agulha e linha (para as bolhas), voltaren (comprimidos) e bruffen;
- Cuecas e meias – levei um par para cada dia (optei por não lavar nada).
O que me faltou levar? Um poncho (um fato gigante para a chuva)! É essencial para os dias de chuva e bem arrumadinho não ocupa espaço nenhum (caso não chova). Como é grande, cobre o corpo e a mochila (até mais importante que cobrir o corpo 😉 ). Como apanhei 2 dias de chuva, consegui desenrascar a coisa e comprei um numa loja dos chineses em Pontevedra. Aqui o desenrasca é melhor que nada, mas devia ter antecipado isto. Primeiro porque eles poderiam não ter o tal poncho e depois porque a qualidade dele é muito duvidosa (assim que o vesti pela primeira vez, rasguei logo metade 😉 )
É difícil voltar à vida normal!
O meu caminho a Caminho de Santiago acabou há cerca de uma semana. Ainda existem noites que sonho com o caminho e dias que acordo pronto para caminhar. Já estou a melhorar, mas acho que sofro de uma espécie de síndrome do caminho.
Aqui depende sempre da forma como cada um absorve o caminho (não vos posso garantir que irão sofrer do mesmo ao fazerem e regressarem do Caminho 😉 ). Da maneira que se entrega, e o que sofre e vive por lá. Apesar de ser uma pessoa viajada, que já viu e viveu algumas coisas, o caminho toca-me de uma maneira que poucas viagens e experiências me tocam. Não sei se é pela dificuldade de caminhar com a mochila, se pelo misticismo característico de um caminho milenar (sim, já percorrem este caminho há mais de 1000 anos!), se pelas pessoas que vamos encontrando no caminho, com as suas diferentes histórias, se por ter caminhado quase sempre sozinho, num país que não é o meu…ou então, pela mistura disto tudo (acho que deve ser por aí 😉 ). Para mim, foi difícil voltar.
Por um lado, é sempre bom voltar a casa (com saúde). Abraçar aqueles que mais gostamos e contar o que vivemos. E aqui começam as primeiras questões e dificuldades (é claro que não é a parte de abraçar que mais gostamos, fiquem descansados 😉 ). Existe uma vontade muito grande em contar as histórias e lições do caminho, mas por mais entoação e pormenor que se coloque nas palavras (atenção que eu sou contador de histórias profissional 😉 ), parece que fica aquém do que foi vivido. Por muito que se conte, existe sempre aquele sentimento difícil de descrever, que obriga a um “não consigo explicar” no meio da história. Não é que exista algum problema em ficarmos com histórias só para nós. Provoca-me é sentimento esquisito de “nem estou cá, nem estou lá” e faz com os primeiros dias de “vida normal” sejam meio complicados (complicados se calhar é demasiado forte, são diferentes, vá! 🙂 ).
Tal como escrevi no inicio, isto não acontece a todos. Como por exemplo um grupo de 4 amigos que encontrei no autocarro de regresso a casa, que mais pareciam saídos de uma tarde de saltos para água num parque aquático algarvio, tal era a adrenalina. Eu estava diferente, parecia que estava na pausa. Passei a viagem sem ler, sem ouvir música, sem falar para ninguém e sem dormir. Apenas a relembrar o caminho. Bateu em mim de forma diferente deste grupo. Atenção que isto não faz de mim um espécie de guru do caminho há espera de canonização, nem tão pouco melhor “caminhante” que as pessoas deste grupo, mas com toda a certeza apesar de termos feito, provavelmente, o mesmo caminho, caminhámos de forma diferente.
Mas (e ainda bem, caso contrário seria meio assustador), muitos com quem falei ao longo do caminho (os repetentes do caminho), descrevem este sentimento como “o vício do caminho” e provavelmente o pós-caminho tratar-se-á de uma espécie de ressaca, que nos provoca primeiro algum abalo, como uma espécie de saída de um aquário onde existe um mundo encantado, e depois, consequentemente, nos provoca uma vontade enorme de voltar. Já estou na fase da vontade de voltar.