a herança judaica de castelo de vide

Hoje em dia a conexão entre a encantadora vila de Castelo de Vide e a presença judaica em Portugal, parece-nos evidente, principalmente porque a judiaria medieval que ali se mantém, é uma das mais bem conservadas do país. Contudo, muitos de nós, padecerão de um conhecimento mais superficial, o que de alguma forma fere a importância histórica deste momento, e que por essa mesma razão, merece ser revisitado de forma mais profunda, assumindo a riqueza e o forte simbolismo deste património por eles deixado. Embora não se consiga precisar cronologicamente quando é que os primeiros judeus se terão instalado em Portugal, a influência da sua presença, das suas vivências, do seu conhecimento e da sua cultura e identidade, é inegável, e em Castelo de Vide, essa é uma verdade ainda mais palpável.

Este povo, que segundo o seu Deus, foi escolhido para cumprir uma missão especial, tem uma história marcada pela perseguição e pelo sofrimento, como consequência de um preconceito que se propagou pelo Mundo, alimentado muita vezes por interesses e invejas, que viriam a fazer deles um povo mártir, considerados como assassinos de Cristo e inimigos da santa religião. O facto de os judeus trabalharem muitas vezes para o rei, em atividades como a cobrança de rendas ou a organização da contabilidade pública, também instigou parte da desconfiança que lhes era atribuída. Além de toda a crueldade que pauta a sua história, existe ainda um golpe tremendamente maior, a falta de documentação sobre a memória desta civilização. Esse apagamento é de certa forma uma perpetuação a uma condenação eterna, onde ironicamente, as poucas fontes que sobreviveram, são dos seus próprios perseguidores. 

Foi há mais de 700 anos, corria o ano de 1320, quando as primeiras famílias judaicas se instalaram na vila de Castelo de Vide. Conhecidos como excelentes mercadores, ligados ao comércio de metais preciosos, eram uma comunidade onde existia uma tradição de literacia, tanto nos homens como nas mulheres, totalmente incomum à realidade portuguesa da época, onde imperava ainda o analfabetismo. A sua aptidão intelectual leva a que alcancem cargos de grande relevância, exercendo assim profissões como, juristas, professores, financeiros ou físicos. Por outro lado, eram ainda dotados de um conhecimento “tecnológico” que aplicariam noutros ofícios como, alfaiates, ourives, tecelões ou ferreiros. Nas judiarias onde viviam – bairro destinado a judeus – era comum habitarem no primeiro andar das pequenas moradias e usarem o rés do chão como loja. 

Embora existisse uma segregação desses judeus, comprovada por exemplo, pela existência da judiaria, bem como da estrela vermelha de seis pontas que eram obrigados a usar, para que pudessem ser rapidamente identificados, a convivência com os cristãos era geralmente pacífica, e de alguma forma, essa segregação permitia que mantivessem uma certa coesão interna, mantendo as suas práticas e costumes. O ano de 1492 revela-se um ano crucial na mudança da conjetura judaica na Península Ibérica. O famoso Édito de Expulsão, decretado pelos reis católicos, D. Isabel e D. Fernando, viria a marcar a ruptura com uma longa tradição de tolerância religiosa. Esta decisão surge como o culminar das tensões sociais que se viviam na Península Ibérica, em grande parte fruto de uma convivência que começava a existir entre judeus e cristãos novos dentro da mesma família, sendo essa convivência entre religiões vista como altamente promíscua. 

Com a publicação do Édito, muitos judeus decidem fugir, e acredita-se que mais de 5000 terão passado por Castelo de Vide, embora nem todos ali se viessem a fixar. Essa chegada de um número tão considerável de pessoas, com origens tão diversas, criou alguma instabilidade social, sendo que os que não conseguiram escapar, acabariam por se converter como forma de sobrevivência, muitos deles criando uma nova identidade, inventando códigos secretos, que lhes permitissem manter viva a sua fé. Esta tentativa de uniformização religiosa, viria a estender-se a Portugal, apenas quatro anos depois, instigada por uma forte pressão sob o rei português, D. Manuel I, para que expulsasse os fugitivos. Estando o rei em negociações matrimoniais com os reis católicos, para casar com a sua filha Isabel de Aragão, acabou por ter ceder a essa pressão por eles exercida. 

Em 1496, após o casamento com D. Isabel, D. Manuel I replica o Édito e decreta a ordem de expulsão dos judeus. Contudo, a sua decisão não encontrou consenso no Conselho de Estado, que demonstrou a sua preocupação com a possível fuga de capitais do país. Nesse sentido e pretendendo reter os judeus em Portugal, D. Manuel I permite que permaneçam com a condição de se converterem. É neste período que se vive um dos capítulos mais negros da passagem dos judeus em Portugal, com as violentas conversões forçadas. Muitas vezes as crianças menores eram retiradas aos seus pais, baptizadas, e posteriormente entregues a famílias cristãs, para que aí fossem educadas. Mas é no ano de 1493, ainda sob o reinado de D. João II, que este capítulo verdadeiramente se inicia, quando o rei ordena que os filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, onde muitos acabariam por morrer à fome. 

Em 1536, o Tribunal da Inquisição é estabelecido em Portugal e esse momento marca também uma nova mudança de paradigma na convivência entre cristãos e judeus. Motivados por todo esse aparato inquisicional, muitos dos cristãos tornam-se “vigilantes”, estando dessa forma constantemente alerta para comportamentos que lhes pudessem parecer suspeitos, por mais absurdos e insignificantes que os mesmos pudessem ser, por parte dos cristãos novos. Coisas tão comezinhas como sentirem o cheiro do azeite vindo da casa de um vizinho e associarem imediatamente esse simples facto, a que pudessem manter ainda práticas judaicas na sua esfera privada. 

Nesta ligação entre Castelo de Vide e a passagem judaica, existem nomes incontornáveis, sendo um deles, o de Garcia da Orta, nascido em Castelo de Vide e um exemplo do percurso típico da diáspora sefardita, categoria geográfica associada a judeus oriundos da Península Ibérica. Os seus pais chegam a Castelo de Vide na sequência da expulsão dos judeus de Espanha em 1492, ambos convertidos ao cristianismo. Garcia da Orta vai posteriormente estudar para a Universidade de Salamanca, onde se forma médico. Em 1534 segue para a Índia enquanto médico, tendo-se estabelecido em Goa, onde criou grande reputação. Acaba por falecer em 1568, sem nunca ter tido problemas com a Inquisição, mas em 1580, os seus restos mortais são queimados num auto de fé, como condenação à fogueira por judaísmo, o que reforça os longos braços da Inquisição em todo o Império Português. 

Visitar a vila de Castelo de Vide é, ainda nos dias de hoje, uma viagem a este passado que apesar dessa tal erosão, aqui se consegue manter ainda nítido. Os exemplos dessa memória ainda tão presente neste território são imensos, sendo possível destacar dois: a celebração da Páscoa, numa lógica de património imaterial e simbólico, e a presença da sinagoga, como repositório material desse património histórico tão significativo. Embora não seja possível assumir com total certeza de que ali existia de facto uma sinagoga, existem vários argumentos fortes que corroboram essa possibilidade. A ausência de um piso superior, sendo que enquanto casa de Deus nunca poderia haver ninguém a viver por cima desse local, e por outro lado, a arca sagrada ali presente, onde se guardavam os rolos da escritura. O despojamento da matéria era comum a estas sinagogas enquanto espaços secretos, sendo que para os judeus o que era de facto importante, era a presença de pelo menos dez indivíduos de forma a ser celebrado o culto. 

A celebração da Páscoa, que ainda hoje se mantém, é um momento muito singular em Castelo de Vide. Este evento mistura práticas vindas do cristianismo, do judaísmo e do paganismo. Um dos elementos judaicos bastante evidente, é a benção dos borregos, que são abatidos de uma forma que remate para o abate ritual judaico. Todas estas reminiscências do que foi a passagem dos judeus em Castelo de Vide, alimentam uma memória colectiva que se sente de forma imediata ao visitar esta vila. Neste lugar, esse tal apagamento que marca de forma tão trágica toda a vivência da civilização judaica, já de si tão sofrida, não será passível de acontecer. Em Castelo de Vide, esta parte tão importante da sua história, não só dos próprios judeus, como da própria história de Portugal, mantém-se hoje, e certamente manter-se-á sempre, viva. De certa forma como se ainda estivesse incandescente, numa simbologia às fogueiras da Inquisição, agora transformadas em marcos acesos de memória.

Julho 2020

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