contrabando de raia seca

Pensar na existência da raia, é pensar em contrabando. Isto é, o contrabandista, na sua génese, é raiano, vive maioritariamente nas aldeias que se localizam junto da fronteira, e é alguém com grande capacidade física, aventureiro e destemido (isto numa mistura  romanceada/cinematográfica, mas com uma boa pitada de realidade). Numa época em que o Portugal rural estava parado no tempo, condenado a um certo marasmo e abatimento, o contrabando surge enquanto modo de vida destas populações da raia alentejana. Tentar identificar de forma cronológica, o início e o fim do contrabando, torna-se um exercício complexo. De alguma forma, a atividade em si, pode ter efetivamente começado, algures pelos anos 30 do século XX, mas falar de um fim, é um erro, já que o mesmo não existiu. O contrabando foi sofrendo constantes mutações, as próprias fronteiras foram-se abrindo e modificando, tal como o modus operandi utilizado, mas assumir um fim, é negar-lhe o que compõe a sua essência.

O contrabando na raia alentejana, e no que era a realidade portuguesa dos meados do século XX, surge como meio de sobrevivência. Numa população com graves dificuldades económicas, onde a escassez de muitos produtos era palpável, e a falta de trabalho um mal comum, a possibilidade de obter um lucro extra, aparecia como uma luz ao fundo do túnel. Por exemplo, dedicados à agricultura durante o dia (criando, mais uma vez, um protótipo da figura do contrabandista), era durante a noite que iniciavam as operações de contrabando. Esta atividade nasce assim, como uma forma de sustento para muitas dessas famílias, onde a pobreza, e a escassez de recursos imperavam. Embora devamos apelidar estas práticas como clandestinas, e nesse sentido, ilegais, uma análise mais profunda do que era a realidade desses tempos, obriga a uma compreensão quase imediata das motivações por detrás desses atos, onde parte da população não ganhava mais de 10 escudos pelo trabalho nos campos agrícolas e com apenas uma passagem de mercadorias, podia vir a receber de 50 a 100 escudos, dependendo da distância e do peso. 

As histórias que ficam deste período estão indubitavelmente envoltas num certo misticismo, que resulta da soma de todas as condicionantes que estavam ligadas a esta atividade. Basta imaginar o cenário, onde um grupo de homens (às vezes algumas mulheres também) seguiam pela calada da noite, curvados pelo peso das cargas que carregavam, iluminados apenas pelas estrelas, sempre vigilantes ao perigo que na altura se materializava na figura da Guarda Fiscal, rezando em silêncio, para que nada de mal lhes acontecesse. A geografia condicionava não só a quantidade que levavam, como as estratégias que traçavam previamente. O que era comum às várias zonas de contrabando, era a dureza dos trilhos a percorrer, fossem eles terrestres ou implicando a travessia por água, arriscando as suas vidas por veredas e ribeiros. 

Contextualizando geograficamente os lugares que compõem esta história, situemo-nos assim, em pleno Parque Natural da Serra de São Mamede, mais especificamente, entre os concelhos de Marvão e Castelo de Vide. A grande particularidade do contrabando que se desenvolvia nestes territórios, prende-se com a sua associação à raia seca, isto é, a fronteira que os separava de Espanha, era uma fronteira terrestre, sendo que estas atividades decorriam maioritariamente, perto da localidade de Galegos. Por entre trilhos ladeados por muros de pedra, entre estreitos e sinuosos percursos, acompanhados por uma vegetação densa, apenas interrompida por afloramentos graníticos, podemos assim imaginar os grupos de homens que ali seguiam. Com as sacas às costas, umas vezes seguindo em carroças, outras, posteriormente já em carrinhas, e outras vezes ainda, fazendo transporte de gado, também para contrabando, até chegarem à pequena povoação de La Fontañera. Visitar ainda nos dias de hoje este lugar, é perceber, não só o que seria a dureza desses trajetos, como a estranheza de uma fronteira tão singular, onde a entrada no país vizinho acontece de forma tão abrupta, e com uma ausência quase total de sinalização, que essa passagem parece no fundo não existir. 

Mas é importante perceber, que como em todas as histórias, também nesta existem dois lados, e do outro lado da linha dos contrabandistas, estavam os homens com a missão de os intersetar, papel desempenhado por parte da Guarda Fiscal, que havia sido criada em 1885, tendo por base, os Guarda-Barreiras. A Guarda Fiscal funcionava como corpo de força pública, organizado militarmente para o serviço de fiscalização do Estado, e estava sob a alçada do Ministério das Finanças. O Cabo Amável, natural da freguesia de Carreiras, desempenhou essa função, durante mais de 20 anos, entre as décadas de 70 e 90, passando por vários postos, como o de Galegos ou Castelo de Vide, onde ainda hoje reside. De forma inconsciente, ou fruto do preconceito, facilmente imaginamos a figura de um guarda fiscal, como austera, fria e de alguma forma temível. Conhecer o Cabo Amável, é a melhor forma de derrubar essas ideias pré concebidas de forma praticamente imediata.

Sentado num café no centro da vila, o Cabo Amável recebe com um sorriso afável. Rapidamente se percebe que este homem é um pequeno repositório de memórias, onde as histórias por contar surgem a grande velocidade. No alto dos seus 74 anos, deixou que a conversa fluísse de forma tão natural que as perguntas foram raras, já que as respostas estavam todas lá. Enquanto vai desenhando as suas histórias, as suas palavras demonstram a sua personalidade tolerante e o seu bom coração. No meio das muitas histórias que partilha, surge uma particularmente caricata e curiosa, que envolvia uma fábrica situada naquela região, onde se produziam, entre outros produtos, luvas. Segundo conta, o seu proprietário, mandava vir de Espanha apenas as luvas da mão esquerda, não se importando que a mesmas fossem apreendidas pela guarda, sendo que em parte, até queria que assim fosse, já que ao fim de pouco tempo, quando iam para leilão, ele as comprava ainda mais baratas, pelo facto de que ninguém iria querer comprar luvas só de uma mão.

O que se torna bastante evidente na sequência de histórias que vai contando, é a ideia de uma convivência pacífica entre guardas e contrabandistas, uma realidade que poderia não ser comum a todos os outros pontos de contrabando. Cabo Amável conta também, como em algumas das apreensões feitas por si, de produtos alimentares como presuntos ou toucinhos, após a chamada de um veterinário ao local, os mesmos produtos acabavam por ser queimados, partilhando o desconforto que sentia nesses momentos, estando consciente da realidade da maioria da população, onde a fome era uma carência real. Conta também, como quem realmente ganhava muito dinheiro, eram sempre os patrões, cabecilhas destas atividades, que nunca eram dessa forma apanhados, porque nunca estavam diretamente envolvidos e também nunca eram denunciados. 

Quando questionado sobre o fim do contrabando, o Cabo Amável automaticamente corrobora a ideia de que esse fim não existiu verdadeiramente. “Nunca terminou, nem vai terminar, mas hoje não é tão inocente como era na altura, na altura até era engraçado.” Por outro lado, assume também, que a abertura das fronteiras na década de 90, levou a uma morte lenta das povoações que residiam junto às fronteiras, de qualquer um dos lados. Em 1995, cessa as suas funções enquanto guarda fiscal, sendo que nos últimos anos, as suas funções já eram bastante diferentes, na sequência dessa abertura, e no tom com que fala, denota-se uma nostalgia evidente desses outros tempos. 

Pensar em contrabando é também pensar na ideia de uma fronteira, mas depois de conhecermos parte dessas vivências, a noção do que é essa fronteira altera-se. De alguma forma a fronteira era acima de tudo simbólica, separando o ser humano da sua circunstância, e não dividindo dois lados opostos, onde guardas fiscais e contrabandistas se gladiavam. Basta pensarmos que existiam famílias com elementos pertencentes a estes dois grupos, ou que certamente existiram histórias de amor que derrubavam essa linha invisível. Por outro lado, é também importante a simbologia de comunhão entre dois países, de construção de solidariedades e de aproximação entre dois povos, através do próprio contrabando. Todas estas questões levam a uma certa legitimamente, também ela simbólica, da atividade contrabandista, que embora ilícita aos olhos do Estado, era lícita aos olhos da grande maioria da população, anulando-lhe um possível julgamento moral, por estar consciente das necessidades de que muitos padeciam. 

Falar-se destas histórias, é uma forma de manter o espírito de sacrifício dessas pessoas vivo, e de alguma forma, de se poder fazer uma espécie de homenagem, a quem contornava a lei,  apenas como forma de sobrevivência, expondo-se ao perigo e arriscando muitas vezes a própria vida. Estes relatos são também parte da herança e da história do nosso país, e preservá-los deve ser imperativo. 

Julho 2020

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