pessoas de Castelo de Vide: Maestro Raposo

A música na pessoa do Maestro Raposo é uma espécie de segunda pele. Durante a conversa foram escassas as frases por si pronunciadas que não envolvessem música, direta ou indiretamente. Mesmo a sua própria linguagem é em si musical, como se verdadeiramente já tivesse nascido músico, mesmo antes de adquirir qualquer conhecimento nessa área. O Maestro Raposo enverga o conceito de talento natural num tecido de verdade, e conhecê-lo é perceber que existe realmente na música uma dose muito grande de magia, um efeito multiplicador de energia que por e simplesmente não se pode explicar além do sentir. O Maestro é muito mais do que uma pessoa que dirige uma orquestra, muito mais do que uma pessoa que compõe música ou que toca uma série de instrumentos. O Maestro Raposo é em si mesmo música, nos seus gestos, na forma como trauteia as melodias e acima de tudo, na paixão com que vive tudo isto a que dedicou e ainda dedica a sua vida.

Ao sermos imediatamente contagiados pela forma entusiasta como partilha a história da sua vida na música, torna-se quase impossível de acreditar que tenha realmente 90 anos. A forma como os seus olhos brilham ao longo desta viagem ao passado, assumem-lhe uma jovialidade tão genuína que impossibilitará de que algum dia o consideremos velho. No fundo é como se nesses momentos voltasse a ser o miúdo de oito anos que já tocava num brinquedo de saxofone, já desperto para esse admirável mundo novo mas ainda totalmente alheio ao percurso que aí nascia. Ser fruto de uma árvore genealógica carregada de outros músicos terá também ajudado, é certo, mas a chave do sucesso, terá sido sem dúvida, a mistura desse tal talento natural com uma grande dose de trabalho e uma teimosia q.b que o levou a nunca desistir. 

Dinâmico e com um espírito de iniciativa que nunca lhe permitiu parar, o Maestro ainda tem sede de compor mais e de tocar mais, e nem o avanço das novas tecnologias o impede de se conseguir readaptar a estes novos tempos, sendo que o computador é hoje um dos seus grandes aliados, embora às vezes lhe pregue rasteiras, mas segundo ele, também as recebe de volta. Numa vida tão cheia de histórias e tão cheia de projetos, a sua tenacidade ainda é tão latente, que quase nos faz sentir que ainda havia tudo por fazer, já que a força e a vontade continuam ali e parecem de sobra. Nada melhor do que começar pelo início e deixar que seja o próprio Maestro a orquestrar esta viagem.

Carlor Bernardo: Como é que se iniciou na música?

Maestro Raposo: Comecei aos 10 anos de idade na música. Eu venho de uma família de músicos, somos 22 músicos na família e ainda hoje 20 continuam a tocar. O meu avô, dois tios, o meu pai, o meu irmão (…) o meu pai tocava um instrumento qualquer, tinha uma facilidade extraordinária. Eu queria seguir música mas o meu pai não me deixou, éramos 7 irmãos e eu trabalhava na oficina com o meu pai aqui em Castelo de Vide, eu fazia cá falta… Então, aos 17 anos fui para Évora, Infantaria 16 voluntário e ao fim de 9 meses concorri à banda da Guarda, eram 160 e tal a concorrer e eu entrei em 1º. Fiz 32 anos de serviço na Guarda, sempre como músico, fazia parte da Orquestra Sinfónica e da Ligeira da Emissora Nacional também.

Carlos Bernardo: Tinha que idade quando deixou a banda da Guarda?

Maestro Raposo: Eu saí aos 50 anos e na altura dirigia 3 bandas civis, a banda de Almoçageme, a banda dos bombeiros voluntários da Lourinhã e a banda de Alhandra, mas enquanto estive na Guarda dirigi 23 bandas, 23! (…) Fizemos uma vez um concerto com a banda de Alhandra em que tocámos a seguir às bandas militares no Trindade, e uma das miúdas que me apresentou disse que a minha expressão na música era, Se todo o ser humano no mundo soubesse música, a paz era universal.

Depois deixei Lisboa e voltei para Castelo de Vide, cheguei aqui e formei o Grupo Coral. Entretanto fui convidado para o Conservatório para Portalegre e então formei a Orquestra de Sopros em Portalegre. Tinha 33 alunos, dava aulas até ao 8ºano, estive 12 anos lá.

Carlos Bernardo: E hoje em dia ainda faz da música os seus dias?

Maestro Raposo: Eu vivo todos os dias a música, a música para mim é um medicamento, eu tenho de tomar todos os dias. (…)

E agora vou-lhe contar uma passagem. Éramos 104 homens, quando conto esta história tenho 104 testemunhas, com o meu chefe 105, estávamos a passar uma música para gravar um CD. Eu tirei um curso na Gulbenkian de harmonia, direção e contraponto. Estávamos a ensaiar uma obra de um senhor do Crato para gravar o Cd, e quando acabou o ensaio, ficou ali a partitura até ao outro dia. No outro dia, no ensaio pedi licença e levantei-me. Quando eu fazia qualquer pergunta, o chefe tenente e o sargento, diziam sempre fala o Raposo é pedrada de cabreiro, isto é, o cabreiro quando atira o pau à ovelha ou à cabra acerta sempre. E eu digo assim Oh Sr. Tenente isto há aqui qualquer coisa, e ele mas isto está farto de ser tocado assim, e eu explico-lhe, Meu Tenente desculpe mas quando mandou fazer as trompas parou antes da dissonância.

Emendas-te o chefe, agora levas uma porrada.

Carlos Bernardo: Voltando atrás, como é que foi a sua vida até ir para a Guarda, ou seja até aos seus 18 anos?

Maestro Raposo: Foi a trabalhar com o meu pai na oficina. O meu pai conseguia tocar tudo. (…) 

Eu gostava de fazer ainda um concerto antes de morrer. Eu não tenho medo de tocar. Podem achar que eu sou velho, mas eu ainda podia fazer tanta coisa… O concerto que eu quero fazer, estava a ver se era em Setembro que é quando eu faço 91 anos, um programa recordar é viver. Eu tenho muitas músicas preparadas e tenho muitas músicas minhas. Amanhã não sei, mas até a este momento, eu sei o que sou capaz de fazer.

Carlos Bernardo: E tirando a música, o que é que faz no seu dia a dia?

Maestro Raposo: Só música, e às vezes sento-me lá no quintal, debaixo dos kiwis, e faço umas palavras cruzadas.”

O Maestro Raposo trauteou durante a conversa inteira, não apenas como forma de conseguir descrever certas melodias, mas por ser essa a sua forma de expressão mais autêntica. A conversa seguiu o seu rumo como se fosse um concerto, e o Maestro não perdeu o fôlego por um segundo que fosse. As pequenas histórias dentro da sua história, foram tantas, que nunca aqui caberiam, e muitos delas nem seriam passíveis de uma transcrição exata. Mas é a sua vivacidade o que realmente fica, enquanto prova de que a música pode ser realmente esse medicamento de que fala, e enquanto ela continuar a ser parte integrante da sua vida, é evidente que ele não irá parar. 

Julho 2020

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