Póvoa e meadas em forma de memória

Póvoa e Meadas, sol de Inverno e final da manhã. Tinha acabado de chegar, seguindo o caminho de uma pequena estrada onde o verde envergonhado que vive no tempo frio, se mistura com o cinzento da rocha que não dá pelo tempo passar. Sem mapa, segui numa pequena viagem, de sul para norte (estava em Castelo de Vide), onde a paisagem assumiu o papel de personagem que conta, em pequenas mensagens, grande parte da história. Assim, logo no início. É claro que não tive logo todas as respostas, mas funcionou como aquela cola sem marca que nos agarra a determinados lugares. Estacionei o carro junto à praça do Rossio, ponto central deste lugar, e iniciei a minha caminhada de exploração.

Antes de avançar, talvez seja melhor contextualizar Póvoa e Meadas.

O seu nome “oficial” é Nossa Senhora da Graça de Póvoa e Meadas, assume a forma administrativa de freguesia e conta 600 como o seu número de habitantes. Um número aproximado. Pertence ao concelho da Castelo de Vide, e é claramente o segundo maior núcleo habitacional, e também de serviços, do concelho. Pertence ao Alto Alentejo, numa zona de fronteira. De várias fronteiras, administrativas, culturais e de paisagem. Fronteira com Espanha a este, fronteira com a Beira Interior a norte, fronteira com o Ribatejo a oeste. Boa parte dos seus quase 75 km2 de área fazem parte do Parque Natural de Serra de São Mamede, numa zona planáltica, a aproximadamente 350 m de altitude, predominantemente coberta por montados de sobro, olivais, áreas agrícolas e formações ripícolas. Pequenas definições que confirmam a teoria de que este é um Alentejo diferente daquele que os livros de história definem. Talvez esta diferença na paisagem e na cultura, possa confirmar um pequeno e especial estatuto de “única”. Vamos ver.

Foi sede de concelho entre 1248 e 1836. Tempo suficiente para alimentar uma rivalidade saudável com Castelo de Vide, a sua sede de concelho actual, e que ainda se sente nos dias de hoje. Esta rivalidade, comum a muitos territórios de Portugal, funciona como uma espécie de pimenta para as rotinas territoriais, onde o sentimento de pertença se eleva. Desde que os limites não quebrem para uma revolução negativa, considero-a saudável. 

A história de Póvoa e Meadas perde-se no tempo, conforme vamos contabilizando os numerosos vestígios arqueológicos de praticamente todas as épocas, começando no Paleolítico até ao movimento dos dias de hoje. Provavelmente foi fundada pelos Templários, entre os séculos XIII e XIV, em torno da atual Igreja da Misericórdia (séc. XVI a XVII).

Numa ligação contemporânea, a construção da barragem, localizada nas proximidades do núcleo habitacional transformou um pouco o rumo da história deste lugar. A barragem foi criada com o objectivo de produzir energia para a região e começou a funcionar em 1927, altura em que era a primeira e maior hidroeléctrica de Portugal. É a segunda maior albufeira do distrito de Portalegre e garante o abastecimento público de água de vários concelhos da região. Além da sua funcionalidade, da criação de emprego e da importância estratégica, mudou a paisagem e trouxe novos habitantes (fauna) para a região.

Para finalizar esta introdução histórica, mais um ponto que marcou e ainda marca este lugar. Num passado recente esta terra foi marcada por grandes latifundiários, também conhecidos como donos de todas as terras, fazendo toda a economia de Póvoa e Meadas girar à sua volta. Estas famílias que se contavam pelos dedos das mãos, marcaram também todo o perfil arquitectónico da povoação. Com grandes palacetes de brazão, que tinham também, como função a representação de um edifício-sede de uma casa (familiar) agrícola. Em redor destes edifícios estavam as habitações, muito humildes, da população assalariada destas casas agrícolas. Todos estes palacetes ainda existem, alguns ainda pertencentes às famílias de origem, outros com diferentes funções, como por exemplo o edifício onde nos dias de hoje funciona o lar de idosos. Uma vida difícil para muitos, que o tempo ainda não apagou da memória de outros tantos.

Voltando à minha chegada a Póvoa e Meadas.

Num primeiro momento a respirar o lugar, fez-me lembrar muito daquilo que é o meu lugar de origem, Rossio ao Sul do Tejo. Um lugar onde o passado ainda se confunde e molda o presente. Na arquitectura e na sua cultura popular. 

Bem perto da praça do Rossio, entrei num pequeno café, explorado pela associação desportiva local. Sem televisão e com um rádio a ditar as regras do som ambiente, por ali fixei a primeira âncora. As paredes estavam cobertas de fotografias de glórias, momentos e gerações, forradas a madeira de cor vintage, aquele vintage original. Estavam não mais que cinco pessoas, que faziam do lugar uma rotina dentro da rotina do seu dia. Um verdadeiro lugar de ponto de encontro, sem grandes distrações. Todos me cumprimentaram com a mesma naturalidade que a juventude de hoje coloca um gosto numa publicação de uma qualquer rede social. Um cumprimento sentido e em forma de desbloqueio da curiosidade que os alimentava no momento: “quem é este?”. Uma característica de Póvoa e de Portugal, uma curiosidade que não afugenta, mas que aproxima. Rapidamente estava ao balcão a conversar com todos eles, as fotografias saltavam das paredes para os seus braços e as histórias do lugar e das pessoas começaram a surgir, entre rodadas, gargalhadas e suspiros. Na minha cabeça a alegria da simplicidade do momento, misturada com aquele sentimento tão meu: as pessoas fazem os lugares e em todos os lugares onde existem pessoas, existirão sempre experiências inesquecíveis. Sem acessórios, nem disfarces. 

Já a sentir-me em casa, entra no café o Sr. Joaquim Belo. Num ápice, e entre toda a sua amabilidade, tornou-se a personagem principal desta história. Baixinho e sorridente, algures na idade de quem tem netos, cumprimentou-me e bombardeou-me com as suas histórias. Muito basicamente, foi isto que aconteceu. O Sr. Joaquim Belo é o presidente do lar de idosos, principal empregador da Póvoa. Antigo bancário, antigo Vereador da Câmara Municipal de Castelo de Vide, fundador da associação desportiva local, antigo dirigente do Estrela de Portalegre, antigo forcado, comendador templário, filho do antigo moleiro e padeiro da terra, e mais uma vinte coisas, entre as quais um fantástico contador de histórias e uma pessoa que apetece ter  sempre por perto. Do primeiro cumprimento passámos para a primeira conversa, na primeira conversa criámos empatia, e com a mesma velocidade o Sr. Joaquim transformou-se no meu cicerone. Não como um guia, mas como alguém que recebe um familiar de quem gosta. Saímos do café e partimos à descoberta da sua Póvoa. (quando momentos como este acontecem, genuinamente, seja na Póvoa e Meadas ou na Noruega, é como uma espécie de Santo Graal das histórias e das viagens). 

Conheci a sua casa e a sua família. Conheci a moagem do seu pai, curiosamente construída com instrumentos da minha terra (MDF – Tramagal), que funciona como lugar de memórias. Passámos por todos os cafés da Póvoa, onde conheci quase toda a gente. Incluindo, é claro, o Sr. Presidente da Junta. Falámos de tudo. Da Póvoa, da vida, de futebol, de comida, da família e outra vez da vida, da sua e da minha. Falámos da vida difícil das gerações passadas e das famílias que “comandavam” as terras. Com personagens boas e outras más, como nos filmes. Falámos dos seus tempos de forcado e dos bons tempos em que o campo da bola se enchia para ver os filhos da terra. Falámos de outros tempos e também do futuro. Num ápice passámos por cada canto da Póvoa. Pela praça de touros, pelo forno comunitário, pela igreja da misericórdia, que contém algum espólio templário e pela normalidade de cada canto e recanto. Já a sentir-me como um ilustre habitante da Póvoa visitei o “seu” lar. Entre os corredores ia-me falando da vida de quem lá vive, as histórias, as alegrias e as dificuldades. É um território pequeno, todos se conhecem como família. Sentia-me a navegar em boas águas e bem comandado. A uma velocidade cruzeiro, mais do que estar ligado à Póvoa, e quase profundo conhecedor da sua história, estava ligado às suas pessoas. Principalmente como reflexo da figura do Sr. Joaquim, é claro. Mas senti grande amizade e generosidade de todas elas, mesmo aquelas a quem nem consigo colocar um nome na sua face.

Quando a conversa é boa o tempo passa a uma velocidade sem controlo. As horas pareciam minutos e era já noite quando voltámos ao mesmo café que marcou o início desta pequena aventura. No rádio ouvia-se o relato de um jogo, coisa que pensava já se ter perdido no tempo, e as pessoas entravam e saiam já sem me considerarem um estranho. No meio das despedidas e agradecimentos, o Sr. Joaquim Belo, como um mágico, solta mais uma carta: “Carlos, amanhã tens jantar marcado?”. E eu: “Não!” (quase a adivinhar o que vinha aí). O Sr. Joaquim volta até mim: “Amanhã tenho um jantar tertúlia com os amigos cá da terra, gostava que fosses jantar connosco”. Entre um brilho nos olhos, respondi um “claro”, um “sim ou um “claro que sim”.

A minha história na Póvoa seguia o rumo de um concerto. Já tinha passado por um aquecimento, pelas melhores músicas e por um relaxamento que me fez ligar à “banda”. Agora, e sem estar à espera (na verdade não estava à espera de nada), sentia-me no encore. Aquela parte em que a banda volta para mais duas ou três músicas, e para os últimos aplausos. Por sabermos que está a chegar ao fim, e por serem as melhores músicas, o sentimento é sempre mais forte. Bem, foi isso que aconteceu no jantar da tertúlia. Cerca de quinze pessoas à mesa, todos amigos sem tempo, e eu. Cozido à portuguesa e vinho local. Conversas, brindes e batismos aconteceram com a fluidez dos momentos que vão directos para o lugar onde moram as melhores memórias. Perdoem-me, mas este momento fica para mim. Porque o que acontece na tertúlia fica na tertúlia.

Já noite cerrada, despedi-me da Póvoa com um sorriso e com promessas de amor eterno. Onde o voltar se torna numa obrigatoriedade.

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