retratos do centro de portugal

tia alice

Tia Alice, ou Maria Alice Marto. Não diria que são duas personagens distintas. Nem algo que se confunda ou cause estranheza. É a mesma, santa e genuína pessoa, que mais do que dar cara e nome, dá coração aquele que já foi apelidado como o quarto segredo de Fátima, o restaurante Tia Alice. Conheci a doce Tia Alice numa bonita manhã de final de Inverno, no seu restaurante, onde conversámos calmamente, junto a um jardim erguido pelo seu filho António. Esta mulher, de olhos azuis brilhantes, é personificação da mulher portuguesa. Bonita, trabalhadora, gentil, acolhedora e com muitas histórias para contar.

As expectativas, sempre as expectativas e gestão das mesmas. Muitos me falaram da Tia Alice, do restaurante e da qualidade do mesmo, e da personagem que dá vida (e nome) ao restaurante, como sendo aquela pessoa que devemos considerar e ouvir. Talvez por já ter lido, ouvido e escrito muitas histórias já encaro uma possível história nova com um certo desembaraço. Mas não quero que pense que vai ser mais uma. Muito longe disso. Mas já encaixo o processo como algo natural. Apesar desta naturalidade ou acumular de experiências, felizmente, são constantes as surpresas, que transformam a naturalidade em algo extraordinário e que, utilizando uma terminologia bem típica de Fátima, me fazem sentir abençoado. Sentir abençoado pelo trabalho que tenho e da possibilidade que tenho em conhecer pessoas extraordinárias, como a Tia Alice. Arrisco a dizer, uma das mais extraordinárias que já conheci. Para quem não sabe, o restaurante Tia Alice é dos mais reputados restaurantes da região. Paragem obrigatória para quem vai a Fátima e lugar de paragem de muitas caras conhecidas. Basta vasculhar o facebook do restaurante para ver esta senhora, que tão gentilmente me recebeu, em fotos com personalidades como o Presidente da República, Maria Bethânia ou José Saramago. Ia, relativamente (na verdade nunca me preparo muito, gosto de conversar e deixar as coisas fluirem naturalmente), preparado para lhe fazer perguntas sobre o restaurante. No final, nem sei se lhe perguntei o seu prato favorito, para cozinhar e comer. A vida da Tia Alice é tão absorvente e, no alto da sua humildade, é um comunicadora de talento genuíno (está sempre a dizer: “se calhar isto não interessa para nada”), que esta conversa foi como viajar verdadeiramente pela vida da mulher Maria Alice Marto, que, mais tarde, como consequência natural da sua personalidade, se transformou na Tia Alice. Personificando aquela tia que todos gostaríamos de ter.

Entrar na vida de Alice Marto, é entrar num filme. Naquela manhã de Sol de Inverno, em que partilhámos uma agradável conversa no jardim do seu restaurante, senti-me dentro de um filme que mistura romance, suspense e ação.  À medida que história avançava, sem dar pelo tempo passar, só pensava: “como é que isto é possível”. Maria Alice Marto nasceu e viveu a sua infância na casa ao lado do seu restaurante, na chamada Fátima velha, bem perto da Igreja Matriz de Fátima. No lugar onde hoje é o seu restaurante, era a taberna do seu pai. Com cerca de 13 anos, numa comum apanha de azeitona na fazenda de seu pai, conheceu um rapaz humilde, pouco mais velho, que ali trabalhava com a sua Família. Anunciando já o final da história, anos mais tarde esse rapaz humilde da aldeia de Casal Novo casou-se com Alice. O problema  foi que, entre o início e o fim da história, o pai de Alice não queria que a filha namorasse com um rapaz de origens humildes. Depois dessa troca de olhares na apanha da azeitona, seguiram-se bilhetes, pequenas conversas, danças em bailes, um pedido oficial de namoro e um primeiro beijo junto ao cemitério. Entretanto, com o amor já enraizado nos dois, e com a Alice com o seus 15 anos, o seu pai entendeu que única maneira de, tentar, acabar com o namoro dos dois seria afastá-los e enviou Alice para um colégio de freiras. Entre Lisboa e Santarém, Alice passou 4 anos quase sem regressar a casa. E sem ver o seu amor. Apesar disso, diz que gostou muito dos seus tempos de colégio, onde aprendeu muitas coisas. Durante esse tempo, apesar dos bilhetes e das várias tentativas (dignas de filme) do seu namorado para a ver, nunca se falaram. Nesse período e com as antigas colónias em desenvolvimento (anos 50), o seu namorado decide seguir viagem para Moçambique e apostar numa vida ligada aos caminhos de ferro. O final de um grande amor, seria o acontecimento mais esperado com este cenário, mas não, o desfecho foi um casamento entre os dois através de procuração, a noiva em Fátima e o noivo em Moçambique. Conseguem sentir que é amor de filme? Já casada e depois de cerca de 7 anos sem falar presencialmente com o seu amado, finalmente consegue ir para junto dele e embarca numa viagem de 22 dias a bordo de um navio de mercadorias para Moçambique. A meio dessa viagem, invadida por sentidos ligados à esperança e também à incerteza, ainda viu o seu nome a ser chamado nos altifalantes do navio, temeu coisas más, mas afinal era só um recado do seu marido a dizer que estava à espera dela e com muita vontade de a receber. Tal e qual como um bom filme de romance. Alice e o seu marido viveram cerca de 20 anos em Moçambique, na cidade da Beira, trabalhando o seu marido nos caminhos de ferro onde fazia a ligação entre Beira e a Rodésia. A vida em Moçambique era boa, mas não foi só feita de coisas boas, também teve das más, das muito más, lá faleceram uma filha e o seu irmão. No total, Alice e seu marido tiveram, 6 filhos em Moçambique. A filha mais nova já nasceu em Portugal. Em 1973, aquilo que seria uma curta viagem a Portugal, tornou-se numa viagem definitiva. Alice e os seus, na altura 5, filhos fixaram-se novamente em Fátima velha e o seu marido regressou definitivamente a Portugal 3 anos mais tarde, apenas com a máquina de costura de Alice na bagagem. Tudo o resto ficou para trás. 

Já nos anos 80 e com muitos dos filhos bem crescidos, entre algumas discussões familiares sobre o que fazer com a taberna do seu pai, decidem-se por fazer um restaurante. Muito por influência dos seus filhos. Foi aqui que Maria Alice Marto se transformou na querida Tia Alice. Sempre gostou de cuidar bem de todos, sempre gostou de uma mesa cheia, nunca gostou de holofotes virados para si. Quem deu o nome ao seu restaurante foram mesmo os seus sobrinhos, com aquele simples e encorajadora frase: “Tia só tens de cozinhar como cozinhas para nós”. Penso que desde muito cedo perceberam que o sucesso estava no coração. No coração e no pormenor de bem receber. Alice ainda se lembra dos primeiros clientes. Arrisco a dizer que se deve lembrar de quase todos, tal o carinho que sempre colocou em cada prato. No inicio acredito que não tenha sido fácil. Toda a família arriscou no restaurante, os pais e os filhos. Hoje no alto da sua bonita idade e da experiência de quem sempre viveu a vida de forma (muito) intensa, ainda é Alice a alma e cara daquele lugar. Hoje este é um dos restaurantes mais referenciados da região centro e para onde se fazem peregrinações dignas do território onde está instalado. Os seus 6 filhos continuam a trabalhar no restaurante. Não digo que se seja inédito, mas é um bonito caso de longevidade e riqueza familiar.  Dá para perceber que a razão do sucesso do restaurante vai muito além da boa comida, certo?

No final dessa manhã de sol de Inverno, depois de terminada a conversa no jardim, caminhei de mão dada com a Alice pelos corredores e cozinha do seu restaurante. Ao ver o olhar com que todos a admiravam, sentia-me a caminhar com uma rainha. Talvez seja isso, seja essa a verdade, a Tia Alice é uma rainha. 

2019

Esta história pertence ao projeto Retratos do Centro de Portugal. 365 retratos, 365 pequenas histórias, sobre o que faz da região Centro de Portugal um lugar diferente. Podem consultar todos os retratos aqui.

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