Na primeira metade do séc. XX o contrabando não era um acto terrorista. Era crime, mas um crime executado por sobreviventes, que viviam numa luta desigual contra a pobreza. Não envolvia violência, apenas envolvia perigo. As regiões de fronteira, entre Portugal e Espanha, eram o palco desta, quase arte, muitas vezes apelidada de comércio de sobrevivência. A região do Guadiana foi um dos principais palcos do contrabando transfronteiriço, com Mértola, e as suas aldeias e montes de fronteira, em particular destaque. Hoje, o contrabando ainda é uma memória muito actual naquela gente. Não foi numa outra vida. Foi quase ontem. Esta história é uma homenagem a esses sobreviventes sem nome. 

Num dia calmo deste Inverno, numa das minhas viagens pelo território de Mértola, cruzo-me com um pequeno edifício na aldeia de Santana de Cambas, com um destaque em relevo. Dizia: Museu do Contrabando. Certamente já vos aconteceu, terem várias pontas soltas, quer de experiências, memórias ou pensamentos, e que, com um pequeno detalhe, tudo se une e tudo faz sentido. Foi essa luz que surgiu na minha cabeça quando me cruzei com o este pequeno museu. Já me tinha cruzado com o tema contrabando em Idanha-a-Nova, em Marvão e, muito recentemente, quando visitei Mina de São Domingos. Tudo territórios de fronteira. Tudo territórios com baixa densidade demográfica. Tudo territórios onde encontrar um emprego que garantisse a chamada estabilidade familiar era quase tão difícil como encontrar uma agulha num palheiro, isto no final do séc. XIX e primeira metade do séc. XX. Voltando a Santana de Cambas e ao seu pequeno museu. Era um dia normal de semana e, como já tinha referido, de Inverno. O museu estava fechado e eu ali especado frente ao edifício, antigo posto da guarda-fiscal que tinha como missão impedir o contrabando. Tem alguma dose de ironia. Estava a sonhar e a ligar todos os pontos que tinham a palavra contrabando em comum, sobre os quais já tinha absorvido alguma informação, mas que na verdade a exploração ou o pensar “porquê?” ou “como?” nunca tinha acontecido. Continuava em frente ao museu, fechado, e ainda antes de sequer pensar em entrar, já estava um senhor da aldeia a tocar-me no ombro. Chegou até mim quase como um ninja, não dei por ele. Ou então o meu sonho e viagem ao passado estavam a ser tão profundos que tinha colocado os meus sensores no mute. Depois do toque no ombro, o simpático senhor lá me disse: “Aqui era um dos principais pontos do contrabando. Eram todos boas pessoas e arriscavam a vida para comer e dar de comer. Se quiser visitar o museu, basta ir ali à junta que vem uma menina abrir-lhe a porta”. E foi o que eu fiz, fui à junta. E num ápice estava uma menina a abrir-me a porta. 

O museu é pequeno. Era o antigo posto da guarda-fiscal, portanto nunca poderia ser um edifício gigante. Faz todo o sentido ser neste edifício, quase como se o museu fosse uma peça do mesmo. E talvez por isso, a viagem ao mundo do contrabando seja muito fácil de alcançar a começar neste ponto. É um simples espaço de memórias. De memórias de pessoas muitas vezes sem rosto e que viviam numa espécie de universo paralelo, o da clandestinidade. Por definição o contrabando é a exportação ou importação de mercadoria sem autorização do estado competente. Em filmes, daqueles de Hollywood,  o contrabando é associado a grandes movimentos financeiros, maioritariamente feito através de produtos proibidos. Em Santana de Cambas, quando perguntei à menina da junta “o que era contrabandeado e como era feito o transporte dos produtos?”, ela primeiro apontou, quase como uma resposta objectiva, e depois disse “as pessoas agiam sozinhas, ou em grupos de duas/três pessoas e apenas levavam um saco como aquele às costas”, e depois avançou “eram tudo produtos banais, trazidos de Espanha para serem vendidos em Portugal, ou porque não haviam em Portugal ou porque eram mais baratos em Espanha. Também acontecia o inverso. Café, cigarros ou calças de ganga da marca Lee, eram algumas das mercadorias.”Fiquei com as calças de ganga na cabeça.

Com um pequeno livro na mão, com a marca do museu, saio em silêncio daquele espaço. Um silêncio pesado e imaginando a vida daquelas pessoas, que não era mais que um meio de transporte. Com o folhear do livro, percebi que os tais heróis sem rosto nem eram mesmo as cabeças do crime. Eram tão somente um meio de transporte, como elo de ligação entre os cabecilhas do contrabando dos dois lados da fronteira. 

Queria ver tudo, todas as rotas, todos rastos, todas as paisagens que aquelas pessoas viveram. Viajava ao som das palavras do pequeno livro. Sim, aquele com a marca do museu. Recordo uma passagem que me fez viajar como se estivesse dentro de um filme:

“Chamo-me Fernando Vaz, sou natural de Moreanes (aldeia perto de Santana de Cambas), andei no contrabando durante dois anos. Em 1963 e 1964. Vida dura e pouco compensatória. Mas lucrativa para o patrão, o “Marrocos” de Bens (monte em Mértola). O processo funcionava assim:

De duas em duas semanas, junta-se um pequeno grupo ao final da tarde e partíamos de Bens. Chegados ao local, arranjávamos a carga. Café em grão, cada saca de serapilheira com 25kg. Recordo que o Talisca da Mina (de São Domingos) levava 30kg porque era forte e quem levava mais, ganhava mais. Assim que escurecia, partíamos em direção a Gibalião (Gibraléon, povoção espanhola a 70km de Santana de Cambas). Quem ia à frente era o António Pinheiro, que conhecia os trilhos de olhos fechados. Só caminhávamos à noite, sempre em fila indiana, com 5/6 metros de distância entre os elementos do grupo. Não sei porquê, sempre tive medo de ir em último.

Quando chegávamos ao destino, bebíamos um pouco de aguardente espanhola, aquele que misturada com água ficava branca. À nossa espera estava quase sempre o patrão “Marrocos” que ia lá ter de transporte. Recebíamos em pesetas e o regresso era feito a caminhar de dia e de noite. Demorávamos cerca de 24 horas a chegar. Íamos leves e cheios de vontade de voltar a casa. Ao chegar a Bens, recebíamos mais 200 escudos (hoje equivale, sensivelmente, a 50€).

Algumas vezes, no regresso, fazíamos outro trabalho e trazíamos mercadoria para Portugal. Muitas vezes eram animais, machos e mulas, para a feira de São Mateus.

O perigo de fazer as rotas de contrabando aumentava com a época das chuvas. As ribeiras enchiam e tínhamos de passar pelo menos por duas. Sobretudo a do Malagão, era um problema. Passávamos a ribeira à corda. Normalmente, o António Pinheiro, que era o mais experiente, lançava-se à corrente e com uma parte da corda agarrada com os dentes, passava a ribeira e atava a corda na outra margem. Despíamos a roupa para atravessar a ribeira.

Muitas vezes caminhávamos sem mantimentos, apenas comíamos bolotas. E o Inverno, nos períodos em que não estávamos a caminhar, combatíamos o frio com as pernas dentro da saca de serapilheira e com o casaco enrolado na cabeça, todos enroscados.

Era assim, a vida no contrabando.”

Imaginem ler estas palavras, no meio de um pequeno cume, algures entre Santana de Cambas e o Pomorão, lugar por onde o Fernando, o António, o Talisca e muitos dos seus amigos, muitas vezes passaram. É um filme. Um real, absorvente e assustador.

 

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