Grande Rota do Zêzere. 370km de viagem, para ser feito a pé, de bicicleta ou de canoa, entre a nascente (Covão d’Ametade) e foz (Constância) do rio Zêzere. 

O rio começa estreito pelo Vale Glaciar até Manteigas, desce os socalcos da Serra da Estrela, entra no vale do Zêzere e ganha dimensão, fica imponente, banhando algumas aldeias de perfil impar, como Barroca, Dornelas, Janeiro de Cima ou Álvaro. Mais tarde, deixa a Beira Interior e entra no território Médio Tejo (sim, o Zêzere irá desaguar no Tejo) quase antevendo o final da sua viagem, não sem antes conhecer lugares, quase a roçar a adjectivação de mágicos, como Dornes ou Penedo Furado. Já na recta final, encanta-nos com a beleza da Albufeira do Castelo de Bode, sempre a pedir uma pausa para um mergulho, seguindo em passo de corrida para Constância, onde encontrará o Tejo, e finalizará a sua viagem. Esta viagem é quase como acompanhar um ciclo de vida, sendo que pelo meio ficámos amigos. A despida não irá ser cruel, mas certamente irá ser uma mão cheia de recordações. Tal como uma boa amizade. Um verdadeiro cultivo de memórias.

Abrantes é a minha terra. Gosto muito dela e conheço-a bem. Quando me perguntam “o que fazer em Abrantes?” (perguntam-me muitas vezes), muitas vezes respondo “Grande Rota do Zêzere!”. Calma. Não é para fazer toda a rota, mas sim, os cerca de 40km que passam por Abrantes. Tipo boneca Matrioska, onde tiramos do interior da boneca principal, uma boneca mais pequena, mas igualmente interessante. Ao bom estilo português, pequeno, diverso e fascinante, a Grande Rota do Zêzere apesar de pequena (quando comparada com outras Grandes Rotas que acompanham percursos de rios), é de uma diversidade a roçar o fascinante. É a minha experiência nesses 40km entre o Penedo Furado e Martinchel que vou descrever aqui (quer dizer, hoje vai ser apenas uma parte…tem tanto para contar e mostrar que tive de dividir isto em dois 😉 ).

Penedo Furado ↠ Matagosa ↠ Água das Casas ↠ Fontes ↠ Souto

São cerca de 21, os quilómetros que separam o Penedo Furado e o Souto, pela Grande Rota do Zêzere. Faço este caminho a pé, podia fazê-lo de bicicleta. Embora que de bicicleta, na secção do Penedo Furado teria que optar por uma variante, pois o caminho por ali é intransitável. Muitas vezes demasiado estreito, outras demasiado arenoso e outras demasiado inclinado (quase que é preciso trepar para ver uma cascata, mas fácil de lá chegar). Começo no Penedo de Furado porque realmente é um lugar lindíssimo. Pertence ao concelho de Vila de Rei, numa zona de fronteira com os concelhos de Abrantes e Sardoal. 

Ao chegar ao Penedo Furado, a praia fluvial, embrenho-me pelo caminho que vai dar as cascatas. Sim, plural. São duas. E muitos riachos e belas lagoas dignas de um olhar mais atendo. Este é um caminho tipo piscina, estou a ir e sei que tenho de voltar pelo mesmo caminho. Mas vale a dupla viagem. Este é realmente um lugar fantástico. Sempre que ando por ali, sinto um misto de orgulho e sorte por ter um lugar assim, quase à porta de minha casa, numa espécie de posso vê-lo quando quiser. É um lugar de filme. 

Escrevo estas palavras e visitei este lugar no mês de Junho, quase a chegar ao Verão, quase com 30º ao final da tarde. Tenho o Penedo Furado só para mim. Por um lado fico feliz, por outro lado penso “como é possível não estar aqui mais ninguém?”. Começo nas cascatas a caminhada (de volta) em direção à praia fluvial. Acompanho o percurso da ribeira do Codes, que corre em direção ao rio Zêzere e albufeira de Castelo de Bode, curiosamente, esse riacho separa a regiões da Beira Interior e do Ribatejo. Chego à praia fluvial deserta, de água cristalina, mesmo a pedir um mergulho, ainda me senti tentado, mas tinha um caminho, ainda longo, a percorrer e não lhe consenti tal pedido. Sigo por um caminho de estrada alcatroada, em direção à Matagosa, talvez o menos interessante desta caminhada, é curto, mas muito inclinado. Em menos de nada, volto a entrar no Mato, para cerca de 1km à frente fazer um pequeno e obrigatório desvio no percurso. Quem faz isto, a pé ou de bicicleta, tem de visitar o Cristo Rei da Matagosa. Bem lá no alto, com um vista impressionante para a albufeira de Castelo de Bode e para as aldeias “empoleiradas” juntos aos braços da albufeira. Volto a respirar fundo, com aquele brilho nos olhos. Volto ao caminho. Se o Cristo Rei fica bem lá em cima, a Matagosa fica bem lá em baixo. Grande descida até lá. Tal como quase todas as aldeias do Norte do concelho de Abrantes, a Matagosa é, digamos assim, muito fofinha. A sério. Acho estes lugares perdidamente, e positivamente, pitorescos. Acho que são verdadeiros diamantes por lapidar (mas isso é conversa para outro dia). Chego à Matagosa bem junto à água de Castelo de Bode. Silêncio quase absoluto, apenas se ouve o vento nas árvores. Com as pequenas e apertadas ruas a desaguarem no azul esverdeado das águas da albufeira. 

Deixo a Matagosa e caminho em direção a uma das minhas aldeias favoritas do meu concelho. Água das Casas. Começa com o verde das vinhas, para produção local, como introdução à aldeia, depois mais uma vez alia um simplicidade romântica, das suas casas e das suas gentes, com todo um envolvimento cénico digno de filme. Pelo menos é o que o meu olhar me transmite, de todas as vezes que passo por aqui. Outra coisa, para mim, uma das melhores festas da região, são aqui. Mas talvez o mês de Julho (mês da festa da terra) seja muito quente para caminhar. Venham às festas e depois voltem para caminhar num mês mais ameno. Deixo Água das Casas, pela estrada dos fundos, a estrada das hortas e quintais. Vejo a placa Maxial do Além. Gosto tanto do Maxial d’Além, pena o caminho não passar por lá. A caminhada até às Fontes ainda é longa, quase sempre em terra batida, entre árvores, sem ver casas, sem ver ninguém. Uma espécie de alimento para a alma (e para os pulmões). Chego às Fontes, em passo largo em direção à igreja lá do sítio. Lugar do miradouro das Fontes. Não é mais um miradouro, este é o miradouro. Lugar lindíssimo, com uma vista que dá vontade de não sair dali. Muitas vezes passo por este lugar e todas a vezes me surpreende. O largo da igreja também o palco das festas de Verão da aldeia. Imaginem-se às 19h30, Agosto, final de tarde, 30º, música de baile (quem não gosta de dar um pé de dança que levante o braço para ser enxovalhado 🙂 ), uns frangos para partilhar com família e amigos, muitos sorrisos, e uma vista de cortar a respiração. A mim, parece-me muito bem. Voltando à rota. Deixo o mundo paralelo que é o miradouro das Fontes e sigo para a recta final deste dia em direção ao Souto. 

O caminho é sinuoso, muitas subidas e descidas. Primeiro pelo interior, em direção a Sentieiras, onde finaliza mais uns dos braços da barragem e onde existe uma zona de descanso, para ganhar alma para mais uma subida e para os últimos quilómetros do dia. A caminhada é isto mesmo. Exige um, pequeno, lado de sofrimento, para a conquista final ser grandiosa. Dá-nos memórias, que um passeio de carro não nos dá. Cansa mais, demora mais tempo, mas tudo se sente de outra forma, para o bem e para o mal. Depois de Sentieiras e passando por Atalaia, o caminho segue sempre por terra batida, seguindo sempre junto à Albufeira. A vista ajuda a amenizar o cansaço. O banco na área de descanso do Souto, marca o final desta dia e desta caminhada.

Eu passo metade da vida em viagem, já caminhei por muitos lugares. Muitas vezes é preciso conhecer muitas coisas, lá fora, para valorizarmos o bom que temos à nossa porta. Caminho extraordinário. 

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(em breve será publicada a segunda parte deste caminho)