Não é por acaso que Idanha-a-Nova foi considerada Cidade da Musica, no âmbito da Rede das Cidades Criativas da UNESCO. Nem o facto de ficar localizada sobre o encantado mundo rural, longe das grandes metrópoles, a afastou desse mérito. Neste território, a música não vive somente do Adufe, símbolo da cidade, ou do internacional Festival Boom, que já quase atinge o estatuto de lendário. A música, em Idanha, para além de circular no coração da sua boa gente, também vive da criatividade, que muitas vezes roça a genialidade, de muitos que ousam em ir contra o óbvio. Desta ousadia criativa, nasceu um, aparentemente simples, festival, chamado Fora do Lugar. Vivi este festival na sua edição de 2017, com um prazer que poucos imaginam.
Conceito do Fora do Lugar: levar música antiga, com os seus melhores interpretes, a lugares onde este tipo de coisas não era suposto acontecerem. Descentralizar é sempre um bonito propósito, como por exemplo, levar um concerto de um grande pianista italiano a Idanha. Acho extraordinário e a roçar o vanguardista, que foge por completo à comum agenda cultural das pequenas vilas do interior. Mas neste Fora do Lugar, ainda vão mais longe. Levam música às aldeias, e mesmo nas aldeias os concertos acontecem nos lugares mais improváveis, como lares de idosos, pequenas capelas no meio do nada ou cooperativas agrícolas. Mais impressionante. As pessoas aderem, quase todos os concertos e eventos estão esgotados. Literalmente, com público dos 8 aos 80 (ou 90) anos. Digam-me lá, se isto não é genial?
A minha experiência no Fora do Lugar começou numa manhã fria de um Sábado de inicio de Dezembro. Apesar do frio de “rachar” típico do interior, estava um dia bonito. Pouco passavam das 10h00 e chegava à pequena aldeia de Medelim (tenho muita dificuldade em dizer “Medelim”, digo sempre “Medellín!!”…influências colombianas em Idanha 😉 ). Tem cerca de 250 habitantes e fica algures entre as “famosas” aldeias históricas Idanha-a-Velha e Monsanto. Ia assistir a um concerto no Centro de Dia da aldeia. Propositadamente, estacionei o carro no início da aldeia e caminhei para o Centro de Dia. Não sabia onde era e nem estava incluído no vasto repertório de lugares do Google Maps. Sem problema, a intenção era mesmo perder-me na aldeia. Tal como seria de esperar, a genuinidade impera por aqui. Acho maravilhoso assistir à rotina diária destas pessoas. Às 10h00, certamente, já estão acordados há umas horas e já desempenharam 1001 tarefas. Muitas, quando passei, varriam a rua em frente a sua casa e pasmem-se, a sorrir. Recordei com saudade, os Verões, sem telemóvel e internet, que passei em casa dos meus avós. Isto pode parecer ridículo, mas é sincero, começo a achar um verdadeiro luxo a vida desta gente. Enfim, lá continuei a minha caminhada, encontrando pela aldeia outras pessoas que pareciam perdidas, assumi que estavam na mesma sintonia que a minha. Não foi difícil encontrar o Centro de Dia, para além da aldeia ser pequena, as senhoras da aldeia funcionam melhor que qualquer gps, até porque a rede telemóvel é pouca (quase uma benção, que irrita muitos e descansa outros). Faltava cerca de 30 minutos para o concerto dos Scaramuccia começar. Estes seriam os artistas da manhã, um trio composto por uma portuguesa, no cravo, um espanhol, no violino, e uma espanhola, no violoncelo, que se encontraram em Haia, na Holanda, onde formaram os Scaramuccia. Estão a imaginar um trio de músicos jovens, premiados e especialistas em música barroca, a tocarem o repertório que o concertino Pisendel interpretou numa viagem a Itália em 1717, num lar de idosos de uma aldeia com 250 habitantes, encostada à fronteira com Espanha (mais interior é difícil). Eu acho fascinante! Quando entrei na sala, sala de concertos naquele dia, pátio nos restantes dias, estavam os músicos a afinar os instrumentos e dois ou três senhores de idade a observar o que aqueles “artistas” estavam a fazer. Pensei: “bem, isto não vem ninguém, as pessoas “diferentes” que estavam na aldeia, foram visitar uma tia ou algo parecido”. Para meu espanto, a faltar 5 minutos para iniciar o concerto havia gente de pé, pois os lugares sentados estavam esgotados. Sim, é verdade que o espaço era pequeno. Mas este concerto, não era propriamente os Rolling Stones em Alvalade. Estava num lar de Medelim, com crianças, pais, mães e avós. A conviverem à volta da música. Tenho a certeza, o reconhecimento como “cidade da música” a Idanha, foi justo. Naquele momento, tive a certeza. Senti-me, como me tantas vezes sinto, como um elemento invisível, a observar momentos geniais.
O concerto dos Scaramuccia terminou com aplausos de pé. Senti nos músicos a incredulidade do momento. No dia anterior tinha tocado no meio de cestos de dióspiros, numa cooperativa agrícola do Ladoeiro (uma aldeia próxima) e hoje num lar de idosos de Medelim, com cerca de 30 pessoas, de todas as idades, a aplaudirem-nos do pé. Com os mais velhos a agradecem por se terem lembrado deles e os mais novos a quererem tocar nos instrumentos de formas estranhas. Com este pasmo, parti em direção a Idanha-a-Velha. Aí iria viver o segundo momento do festival, um encontro/workshop de urban sketchers dirigido pelo mestre Eduardo Salavisa. Mais uma distorção do óbvio. Trazer um movimento tipicamente urbano, para um meio rural. Já conhecia Idanha-a-Velha. Desde e primeira visita que a acho encantadora. Imagino sempre o sem fim de histórias que se devem ter passado por ali. Com esta bem preservada e foge ao turismo de massas, talvez pela sua distante localização, é como se fosse um museu a céu aberto e sem porta de entrada. Com o positivo de ainda ter gente a morar por aqui, fazendo elas, também, parte da história e podendo contar a sua história. Ao contrário dos restantes participantes do workshop, fui o único que não me agarrei ao lápis e ao papel. Mais uma vez, transformei-me em invisível, com a missão de observar todos aqueles que desenhavam, com pormenor pequenos recantos da aldeia. Achei muito interessante o filtro e o olhar que o desenho provoca. É quase como, numa aldeia escolher uma parede, e nessa parede ir ao pormenor. É como uma foto, sem a perfeição de uma foto. Acho que um sketcher que desenha uma pessoa na sua rotina diária, sem falar, só a observar, fica com uma pequena história para contar sobre essa pessoa. Muito provavelmente a história será irreal, mas são os movimentos dessa pessoa, que activam a imaginação e que, consequentemente, passam para o papel. Desenhar nunca vai ser o meu forte, mas fiquei com uma pontinha de curiosidade em experimentar. Entre voltas à aldeia e momentos sentado em muros a observar, simplesmente o tempo a passar, o dia transformou-se em noite e era tempo de partir para a minha querida aldeia de Monsanto (nos últimos tempos, tenho passado muitas vezes por lá, e escrevi, por exemplo, esta história). Todos os momentos são bons para voltar a Monsanto, essa aldeia encantada. Mesmo numa escura e fria, noite de Dezembro. Foi lá que jantei, não sem antes caminhar entre as suas ruas (mais que não fosse, para aquecer, já que são quase todas muito inclinadas). O último momento do dia, e do “meu” festival, seria um concerto numa pequena capela, chamada Capela de São Pedro de Vir-a-Corça. Esta pequena capela, fica no meio de um pequeno bosque, às portas de Monsanto, e só abre portas em dois momentos. Nas festas de São Pedro e no Fora do Lugar. Tem que ser especial, não? O concerto começa às 21h30. Não existiam reservas de lugar e estava limitado aos lugares disponíveis. Eram cerca de 21h00 quando cheguei.
Quando cheguei à capela, depois de ter passado por uma pequena estrada de terra batida, já estavam uma boa dezena de carros estacionados em volta do espaço. A capela era maior do que eu imaginei. Tinha capacidade para cerca de 70 pessoas, Talvez, 40 sentadas. O palco montado estava em frente ao pequeno altar. Confesso que este último concerto seria o momento que mais curiosidade me tinha despertado, nos momentos antes da partida para o território de Idanha. É claro que depois do que tinha vivido durante o dia, a fasquia ainda estava mais alta. Este concerto teria 4 músicos em palco. Vindos da Irlanda, da Catalunha, da Hungria e do longínquo Irão. O mote seria uma viagem entre as sonoridades persas e irlandesas. Outro ponto interessante, seria a primeira vez que estes músicos se juntariam em palco. E todos juntos, provavelmente a última. Sem ensaios, sem nada. Penso que sabiam como dar os primeiros acordes de cada música e depois seria de improviso, sem saberem como iria acabar. A capela estava cheia, portanto, eu e mais cerca de 70 pessoas, estávamos prestes a assistir a algo único. Mesmo único. E assim foi. Um momento que provavelmente nunca irei esquecer. Durante 1 hora, não consegui “desgrudar” o meu olhar do palco. Todos, na sua arte, na minha opinião são geniais, mas a interprete do Irão, de seu nome, Arezoo Rezvani, com a sua voz e o som dos seus instrumentos, santur e daf, ainda hoje circulam na minha cabeça. Este concerto foi uma viagem, não só a diferentes culturas, com as suas sonoridades e peculiares instrumentos, mas também uma viagem pelos nossos sentidos, que muitas vezes me fizeram arrepiar com o andamento da batida. Não consigo responder a esta pergunta por todos, mas a julgar pelos olhares cristalinos dos meus vizinhos de cadeira, assumo que este momento não passou indiferente a ninguém e irá perdurar na memória de muitos. Mais uma vez, este concerto (tal como o da manhã) foi visto e sentido, tanto por crianças, como por gente que já viu muito. Acredito que a grande parte, dos espectadores, pertence à comunidade de Idanha. Que sorte têm de viver numa terra com gente que faz existir momentos como este. (e este foi apenas um dia, o festival dura cerca de 3 semanas, entre concertos, workshops, caminhadas e masterclasses) Terminada esta viagem musical, voltei em silêncio ao meu carro, liguei o carro e desliguei o rádio. Foi com música desta gente na cabeça que voltei a casa.