Mina de São Domingos, aldeia do Alentejo profundo. Pertence ao concelho de Mértola, em pleno Parque Natural do Vale do Guadiana. Dista pouco mais de 15km da vila Mértola e fica em zona de fronteira, com a vizinha Espanha a Este e o vizinho Algarve a Sul. E o que difere esta aldeia de todas as outras? O que faz dela um lugar especial? Porque estou hoje a escrever sobre esta aldeia? Bem, vamos começar pelo início. Em 1850, o lugar onde hoje existe a aldeia era um cerro, um lugar onde não existam casas, quase (ou mesmo) como um socalco da Serra de São Domingos. Poucos anos mais tarde, um aventureiro italiano, de nome Nicola Biava, descobriu vestígios de uma antiga galeria romana, que indicava uma possível antiga exploração de minério. Facto que se confirmou. Aqui começa a história de Mina de São Domingos. Num ápice, formou-se um consórcio espanhol de nome La Sabina, que adquiriu os direitos de exploração do local. Basicamente, comprou toda a área da mina, que ainda hoje lhe pertence. Com a mesma velocidade, alugou os direitos de concessão e exploração da mina, a uma empresa inglesa, de nome Mason & Barry. Constituída pelo aristocrata londrino Sir Francis Barry, que, segundo reza a história, apenas visitou por uma vez a mina que lhe fez fortuna, e pelo seu cunhado, James Mason, um engenheiro de minas, que, segundo também reza a história, foi a pessoa mais importante em toda história de Mina de São Domingos. Com isto, o cerro descampado, quase como um passo de magia, transformou-se numa mina riquíssima em cobre e enxofre, e numa aldeia, que seria mais uma pequena metrópole, com teatro, hospital, igreja, campo de futebol, polícia privada, mercado, entre outras regalias e serviços de primeiro mundo. Foi a primeira aldeia do país a ter luz eléctrica e uma linha de caminho de ferro privada, tinha gente de várias nacionalidades e de todos os patamares económicos. Existiam pessoas especializadas em vários sectores e serviços (muitos nem estavam directamente relacionados com a exploração mineira), contabilizando mais de 10 mil habitantes na primeira metade do séc. XX. Talvez até mais do que os habitantes do núcleo urbano da sua capital de distrito, Beja. E a mina, não era só aldeia. Estamos a falar quase 20km de exploração e de espaços ligados à mina. Foi construída, de raíz, uma aldeia fluvial, de seu nome Pomarão, que servia de porto fluvial, para escoar os produtos da mina para outros lugares do mundo, através do Rio Guadiana. Aldeia, que ainda continua viva. Existia também uma linha de caminho de ferro a ligar Mina de São Domingos ao Pomarão. Tempos áureos, de grande dinâmica, vividos em plena época da Revolução Industrial. Mas, tal como em todas as minas, os recursos eram finitos. A exploração mineira terminou em Mina de São Domingos em 1962, pouco mais de 100 anos do seu início. Todos os que trabalhavam na mina perderam o seu emprego e os que não trabalhavam na mina perderam quem lhe dava sustentabilidade para o seu negócio. Segundo um principio de arquitectura, o objecto adequa-se à função. Mina de São de Domingos tinha perdido a sua função. Quase como um vazio impossível de restaurar. Passados 50 anos do fecho da mina, Mina de São Domingos ainda existe como aldeia, com cerca de 700 habitantes, que vivem dentro de um pedaço de história imponente e fugaz. Estão a viver e a escrever uma nova história deste lugar. Continua viva. Esta, deve ser a maior introdução alguma vez escrita no Meu Escritório. A grandeza da história, e sobretudo, a forma como me tocou, assim o justificam. Já começam a perceber porque este lugar é especial?
A minha história com Mina de São Domingos, não começou com esta minha recente visita, com o objetivo de escrever esta história. A minha história com este lugar, começou em 2013. Precisamente na minha épica viagem de bicicleta, entre Abrantes e Vila Real de Santo António. A viagem inaugural, a viagem mais importante de todas, a viagem que deu origem ao que hoje é o, com muito orgulho, internacionalmente premiado O Meu Escritório é lá Fora!. Portanto, Mina de São Domingos, quase sem querer, também foi uma das grandes culpadas disto tudo. Quis o destino, que no Verão de 2013, passasse e parasse na Mina. Digo, quis o destino, porque viajava (quase) sem destino. Viajava sem mapa e no início de cada dia, não fazia ideia por onde iria passar. Recordo esse dia e a paragem na Mina, como se fosse hoje. Recordo-me que almocei em Serpa, já um pouco fora de horas, foi mais um lanche almoçarado. Era início de Agosto, portanto, facilmente conseguem imaginar o calor que se fazia sentir. Nessa paragem para almoço, entre conversas com locais, decidi que iria ficar em Mértola a dormir. Lá indicaram o melhor caminho para lá chegar. Nesse caminho, estava incluída uma passagem por Mina de São Domingos. Nunca lá tinha ido antes. Não conhecia, de todo, a sua história. A meio da tarde, parti de Serpa. Estavam mais de 40º. Recordo que foi um Verão particularmente quente. Já vinha a pedalar desde Moura, nesse dia, e já tinha muitos quilómetros nas pernas dos dias anteriores. Todas as sombras, eram bons lugares para parar e recuperar algum folgo. Não me recordo de quantas vezes parei, durante os mais de 30km que ligam Serpa a Mina de São Domingos, mas sei que foram muitas. Senti-a-me já meio a desfalecer, até que antes da Mina, encontrei, quase no meio do nada, quase como uma miragem no deserto, uma bomba de gasolina, que também tinha um pequeno café. Como é óbvio, parei. Não fazia ideia a que distância estava da Mina, já só pensava em chegar (sem uma queimadura grave) a Mértola. Lembro-me que encostei-me a bicicleta a uma parede do café. Estava uma senhora e um senhor, já com muitos anos de vida, sentados numa esplanada improvisada, à sombra, naquele que parecia o lugar mais fresco do local . A senhora trabalhava no café da bomba, o senhor estava simplesmente a deixar o tempo passar. Pedi um calippo de morango e um ice tea de pêssego. Pareceram-me as duas coisas mais refrescantes que existiam por ali. Sentei-me ao lado do senhor. Nem 1 segundo passou e o senhor fez-me a pergunta óbvia: ” o que anda o menino a fazer de bicicleta com tanto calor?”. Lá lhe disse que estava a viajar, de onde vinha e para onde ia. Ao que ele rapidamente retorquiu, com um “eu quando era novo também fazia viagens de bicicleta, fui até Lisboa de bicicleta, para tirar (ou renovar!?) o bilhete de identidade. Nem sei quantos dias demorei”. Bem, em 5 segundos de flashback, imaginei como teria sido a viagem desde senhor, talvez há 60 ou 70 anos atrás (o senhor deveria ter mais de 90). E com esta pequena troca de palavras, fiz a minha primeira amizade em Mina de São Domingos. Resultado, aquilo que seria uma pequena paragem para me refrescar e respirar, durou quase 2 horas, entre conversas e histórias sobre a Mina. Ouvi pela primeira vez os nomes de Mason e Barry, ouvi histórias das dificuldades e dureza do trabalho de mineiro, ouvi pela primeira vez a história, com orgulho, de ter sido a primeira aldeia a ter luz eléctrica, ouvi histórias de futebol. Enfim, ouvi coisas demasiado encantadoras, que me fizeram nunca esquecer este pequeno e grandioso momento. O Sol já estava baixo quando saí daquela inóspita bomba, com vontade de ficar para ouvir mais umas 100 histórias. Passados, talvez, 15 minutos a pedalar cheguei a aldeia. Com a paragem inesperadamente longa, e com o dia a caminhar para o fim, não parei na aldeia, apenas a atravessei. É engraçado como senti logo algo diferente. Muito por culpa do senhor das histórias, senti que já conhecia a Mina e facilmente, sem deixar de pedalar, fiz uma viagem no tempo e imaginei como seria aquele lugar há 100 anos. A diferença das experiências, está mesmo nas pessoas. Recordo que cheguei já noite a Mértola. Nunca mais esqueci a Mina e aquela conversa. Diria até, que foi um momento importante para aquilo que se tornou a minha vida. Senti, ou confirmei, que existiam muitas histórias por contar, muitos lugares maravilhosos (e escondidos) por aí, muitas conversas improváveis (e deliciosas) para se ter. Ficou sempre a promessa de uma visita. Felizmente, quase 5 anos mais tarde, aconteceu.
Foi numa manhã chuvosa de Fevereiro, que voltei a Mina de São Domingos. Existia uma adrenalina maior em mim, para este regresso, do que para a primeira vez que visitei a EuroDisney. Primeiro, pelo que vivi no tal Verão de 2013, que me marcou e impressionou. Segundo, porque mesmo sem ter, entretanto, voltado a Mina, acompanhei-a de outra forma (aquela mais atenta) e fui desembrulhando um pouco da sua história. E por fim, cada vez que dizia “vou a Mina de São Domingos”, todos (os que conheciam) teciam comentários do género: “vais adorar”; “é um lugar diferente de todos os outros”; “é uma paisagem lunar”; “é uma história incrível”. Enfim, ninguém se aproximou, nem de perto, de um “vais lá fazer o quê?”. Portanto, as minhas expectativas eram altas. À minha espera estava a Sara Ribeiro, que pertence à Fundação Serrão Martins. A Sara vive na Mina, deve ter a mesma idade que eu. Hoje vejo-a como uma espécie de guardiã da história da Mina. A Sara iria passar parte do dia comigo, contar-me algumas histórias e levar-me a alguns lugares marcantes. Encontrei-me com a Sara na antiga escola primária da aldeia, num sala apinhada de documentos históricos da história da mina. Juro que me apeteceu vasculhar alguns. Começamos a nossa pequena viagem pelo antigo teatro e hoje uma sala de exposição de objetos e histórias da mina. É bom local para começar uma visita e com elemento introdutório à história da mina. Este lugar tem particularidades incríveis. Não só a efectiva actividade de exploração da mina, mas tudo o que foi criado à volta da riqueza da exploração. Imaginar um lugar como este com um hospital, com campos de ténis, com uma equipa de futebol a disputar campeonatos nacionais, com bailes, cinema e teatro e uma vida social activa, aqui talvez para as classes mais altas, mas também com mercado diário, que, pelas fotos me pareceu surreal. Enfim, tudo é incrível, sobretudo pela velocidade com que aconteceu. Quase a lembrar aqueles filmes americanos, em que no início do filme, aparece um aventureiro solitário a cavalo, que no meio do nada, num riacho, descobre ouro, e que em duas horas de filme, nasce uma cidade gigante. Sinto essa velocidade e dimensão aqui. Com uma agravante, eu estou dentro do filme. Mina de São Domingos ainda existe e a história ainda está a ser contada.
Em seguida saímos em direção às ruínas da mina. Bem, dizer que é surreal é pouco. É misto de cenário de guerra, com a cratera de um vulcão e ainda com traços de um cenário apocalíptico ao melhor estilo do filme Mad Max. Mas tudo isto, em grande. É chegar a outro planeta. Apesar do cenário ser de ruína, não afasta. Sentia um desejo forte de voltar ao passado e ver aquele lugar, com aquela dimensão a laborar. Nestas viagens imaginárias ao passado, juro que quase que ouvi barulhos do passado no presente, metal a bater na pedra, o barulho do comboio, a agitação da mina. Mas na verdade, existia apenas silêncio e a grandiosidade de espaço. Apesar de não ser classificado assim, este deve ser dos melhores museus que já visitei. A céu aberto, cru e até mesmo rude, mas incrivelmente sincero e imponente. Não só conta uma história, mas como faz sentir a história. Muito mais do que qualquer geringonça a 4D e 4K e com wifi e bluetooth, e mais não sei o quê. Coisas que os museus actuais nos habituaram. Aqui dá vontade de saber tudo. Pelo menos, foi esse sentimento que me provocou. Percorri, de carro, o caminho que liga Mina de São Domingos a Santana de Cambas, outrora a linha de caminho de ferro que ligava a mina ao Pomarão. É claro que, neste troço, tenho de destacar a Achada do Gamo. Entre pequenas barragens de cor esquisita (parece a cor de Coca-Cola) e as ruínas daquele núcleo, quase não existe espaço para grandes conversas, e não queria saber o que tecnologicamente representava aquele lugar. Só queria, em silêncio, viver a dimensão daquele espaço inusitado. Mais uma vez, reforço, a fugaz e gigante história deste lugar. As diferentes, e intensas, vidas que já teve. É incrível. Quase como magnético. É claro que é lugar diferente. Isso eu já sabia. Só não sabia era que iria provocar esta reação em mim, elevando-o para o estatuto destinado ao meus lugares especiais.
Completamente imerso neste lugar, regressei o núcleo urbano da aldeia. No apogeu da exploração da mina, os seus responsáveis resolveram criar habitações para os seus trabalhadores fixarem ali as suas famílias. Foram construídos vários bairros, uns mais humildes, com várias centenas de casas alinhadas lado, com uns incríveis 16m2 de espaço, sem casa banho (existiam casas de banho públicas) e com uma lareira (que servia de fogão e de aquecimento) e onde habitavam, muitas vezes famílias numerosas. É inacreditável a comparação com as condições que em vivemos hoje. Mas apesar desta precariedade, as restantes soluções de vida não seriam melhores. Ali, era pequena, mas tinham casa, tinham acesso saúde, tinham trabalho. Depois existiam bairros mais nobres, para engenheiros, médicos e administradores da mina. Muitas dessas casas ainda hoje existem. Muitas recuperadas, outras com anexos criativos, a casa do governador hoje é um hotel, enfim, aldeia foi-se adaptando. Primeiro ao vazio da perda, depois adaptado-se a uma nova vida. Mas não o julguem como um espaço moribundo. Existe muitas coisas boas por ali, como por exemplo a Casa da Torre, antiga casa da polícia, da Isabel e do Bruno, que hoje está (muito bem) convertida ao turismo, como casa de campo, com alojamento (sobre a Isabel e o Bruno, e a sua Casa da Torre, vou falar noutra história. São duas pessoas excepcionais que conheci em Mina de São Domingos, que depressa passaram de anfitriões a amigos. Tão excepcionais, que merecem e justificam uma história só para eles e para a sua Casa da Torre. Mas deixo já a recomendação, vão a Mina de São Domingos? Fiquem na Casa da Torre. Só pelo pequeno almoço vale a pena 😉 ). Mas existem outros bons exemplos. Como a Casa do Mineiro, que é um misto entre o Posto de Turismo, local de ajuda aos locais (a resolverem problemas, nomeadamente com a legalização de suas casas) e uma réplica de uma antiga casa de um mineiro (vale a visita). Outro bom exemplo de adaptação, é a praia fluvial de Mina de São Domingos. Outrora uma albufeira (gigante) para abastecimento de água e outra utilizações relacionadas com o funcionamento da mina. Hoje um espaço bastante agradável, sobretudo para mergulho no Verão ou para um passeio de canoa e ter outra perspectiva da aldeia. A Sara ainda me levou a conhecer mais uma pérola da aldeia actual. A mercearia do sr. Francisco Romba. Foi uma viagem direta à minha infância, parece um lugar que ficou perdido no tempo. Mas que hoje assume quase uma dose de vanguardismo. A diferença é que este lugar não foi feito para ser assim, é mesmo assim, é genuíno. Lembro-me tão bem de ir com a minha avó à mercearia da nossa vizinha, na nossa aldeia. Até o cheiro era igual a esta. Para finalizar a viagem dela aldeia, fiz uma visita ao antigo cemitério dos ingleses. Local ermo, com vista para aldeia e para mina. Era neste local que eram enterrados os engenheiros e trabalhadores ingleses. Este lugar tinha (ou tem) uma particularidade, pois, segundo reza a história, a terra na qual os defuntos eram enterrados vinha de Inglaterra.
De cerro, este local passou a metrópole, com riqueza e dinâmica, em pouco tempo perdeu a sua função, provocando uma “fuga” de quase toda a sua população, deixando uma história gigante para trás. Hoje, passados mais de 50 anos do fecho da mina, a aldeia e a sua população, vive uma nova fase da sua vida. Têm uma carga histórica gigante e impossível de apagar. Mas hoje vivem uma vida normal. As crianças têm uma escola nova, o mítico campo de futebol Cross Brown, ainda tem a sua equipa a jogar, pessoas como a Sara, a Isabel e Bruno, têm os seus trabalhos ligados à aldeia, a praia fluvial enche no Verão. Mas apesar desta normalidade da vida destas boas pessoas, este lugar nunca vai “normal”. E espero que nunca o seja. Este lugar é diferente e especial. Acho que a sua história e o seu legado, lhe vão proporcionar uma nova vida de esperança e de positivismo. Hoje, o turismo sustentável, e das histórias e das experiências, é uma realidade. Diria mesmo, que é no luxo do turismo. E lugares como este, tão únicos, fortes e genuínos, são um autêntico parque de diversões, para quem procura ser arrebatado por uma boa história e, sobretudo, para quem procura construir memórias.
É oficial. O particular lugar chamado Mina de São Domingos, é um dos meus lugares favoritos.