antónio correia, o antigo barqueiro de Álvaro
A primeira coisa que magnetiza a atenção, ao conhecer o Sr. António Correia, são os seus olhos. Contornados por linhas vincadas, a que não faz sentido apelidar levianamente de rugas, os seus olhos revelam uma tal profundidade, que torna de imediato evidente, o mar de histórias que guardam. São olhos com muitas vidas por dentro. Se essa denominação existisse, seria a que melhor nele se encaixaria, olhos de rio. É também na forma como se apresenta, como fala, como gesticula, que lhe assumimos rapidamente a relação umbilical a esta encantadora aldeia de Álvaro, e claro, ao rio Zêzere, que faz dela miradouro. Neste quadro, parece assim estar tudo certo, todos os elementos combinam na perfeição, dando a sensação de que na ausência de qualquer um deles, os outros se dissipariam.
António nasceu em Álvaro há 75 anos, e é esta aldeia de xisto e de fé, a que chama de Casa desde então. Estudou apenas até à 4ª classe, altura em que teve de começar a trabalhar, ajudando o seu pai na agricultura. Quando o seu pai passou a assumir a função de barqueiro, após a criação da barragem em 1954, iniciou-se também ele nessa função, e com apenas 11 anos. já andava sozinho no barco. A idade tão precoce com que começa a trabalhar como barqueiro, explica de imediato o seu profundo conhecimento do Rio Zêzere, ligação essa que permanece até aos dias de hoje. Conta como além do transporte de pessoas, também levava muitas vezes juntas de bois, fazendo essa travessia todos os dias, inclusive de noite. Esta relação foi apenas quebrada durante dois anos, quando vai para a guerra em Angola, onde trabalha enquanto operador de mensagens.
Com 25 anos regressa finalmente a Portugal, onde já tinha a perspetiva de começar a trabalhar na Marconi em Lisboa, mas a vida troca-lhe as voltas. No dia do seu desembarque, andava o seu pai a apanhar maçãs para lhe levar à chegada, quando após uma queda aparatosa, parte a coluna. Quando António chega, já o seu pai estava hospitalizado, e apesar de nesse dia ainda o conseguir visitar, no dia seguinte recebe a notícia do seu falecimento. O que deveria ter sido um dia de celebração, pela sua chegada são e salvo, torna-se assim um dia negro. Na sequência deste acontecimento trágico, não tendo mais irmãos, e estando a sua mãe doente, António rapidamente percebe que terá de voltar a Álvaro e perspetivar a sua vida num sentido diferente da que havia idealizado neste regresso.
De volta a Álvaro, volta a trabalhar enquanto barqueiro, contudo, rapidamente consegue perceber que o dinheiro que ganhava não era suficiente, e que precisava de encontrar outras fontes de rendimento. Começa a trabalhar com um táxi, depois com uma camionete, e arranja uma pessoa a quem paga nas alturas que não consegue fazer o transporte do barco. É também nesta mesma altura, que estando a sua casa a necessitar de algumas obras, decide aí um montar um café, café esse que viria a ser o primeiro a existir na aldeia. Depois ainda lhe acrescentou uma mercearia, contando que ali se vendia de tudo um pouco, desde uma agulha a um eletrodoméstico, mas quase 20 anos depois da abertura, que aconteceu em 1974, percebe que está na altura de fechar.
Empurrado para a política, palavras suas, exerce as funções de Presidente da Junta durante 32 anos. Conta que quando entrou para a Junta, 80% das povoações pertencentes à freguesia, não disponham de água, e que não havia um único quilómetro de estradas alcatroadas. Atualmente, a situação está totalmente contornada, contudo partilha com alguma tristeza, que no recenseamento de 1976, haviam 711 eleitores, e que hoje são apenas 180. Apesar de hoje não existir nenhum estabelecimento em Álvaro, lembra-se bem de quando existiam aqui, 7 tabernas e 3 mercearias, havendo inclusive uma casa, “Casa Mendonça” que sozinha empregava entre 30 a 40 pessoas.
A problemática dos fogos, acaba por ser um dos elementos mais marcantes que explica a falta de pessoas a residir na aldeia. Com os primeiros, em 1990/1991, as camadas mais jovens acabam por sair, em consequência da falta de emprego, após o desaparecimento das explorações de resina e de corte de madeiras. É nesta fase da conversa que se percebe que António é alguém que não se deixa vergar pelas adversidades, e rapidamente muda o rumo da conversa, passando a histórias mais alegres. Conta, que para além de todas as atividades que já mencionou anteriormente, foi ainda dono de uma moagem. Isto é, os moinhos vinham do tempo do seu avô, e passaram depois para o seu pai, e é nesta altura que partilha a história curiosa da sua concepção. Explica que em dias de grandes quantidades de trigo ou de centeio para moer, o seu pai tinha de pernoitar no moinho, e que foi numa dessas noites, num dia de verão com vento norte, que a sua mãe foi lá dormir, e o resto é história, conta entre risos.
Antes da construção da barragem, descreve a existência de um outro Álvaro lá em baixo, que viria a ficar assim submerso, obrigando as pessoas que lá viviam a ter de sair para outros lugares. Percebe-se que apesar de uma vida cheia, onde se envolveu em muitas atividades diferentes, é dos seus tempos no rio, enquanto barqueiro, que mais histórias guarda. Infelizmente algumas delas, envolvem momentos menos felizes, com algumas mortes, que explicam também a dureza desses tempos e as dificuldades que muitas pessoas ali passavam. Mas António tem o dom de partilhar todas as suas histórias, mesmo as mais trágicas, num tom sempre leve, como quando conta a história de um homem que faleceu no rio, com uma congestão, e acrescenta “estava despido com uma faca no bolso, já viu como é que isso pode ser? Qual é a admiração, tinha-a nas calças que ficaram na borda!”
Apesar de admitir que existiram tempos em que se passava fome em Álvaro, brinca dizendo que na sua casa isso nunca aconteceu, “como sempre disseram, os moleiros eram ladrões, portanto nunca faltou a farinha para cozer o pão!” Conta que tal como era prática comum em muitos outros lugares à época, também aqui, existiam casas grandes, que empregavam a grande maioria da população, e que geralmente, apenas os maridos trabalhavam, sendo que as mulheres eram chamadas apenas, nas alturas da sacha do milho ou da apanha da azeitona. Nesses tempos, explica que o dono da casa ficava por exemplo com quatro litros de azeite, e eles apenas com um, embora reconheça que nos dias de hoje essa divisão é mais justa, sendo geralmente metade metade. Partilha ainda que com a chegada da exploração de resina, se começou a ganhar um pouco melhor, e que trouxe ainda a vantagem, de envolver processos que faziam com que houvesse trabalho durante todo o ano praticamente.
António viria a deixa o barco apenas após a construção da ponte, que passaria a ligar assim Oleiros, distrito de Castelo Branco, a Pampilhosa da Serra, já distrito de Coimbra. Inaugurada a 27 de Agosto de 1983, contou nesse dia com a visita oficial do então Presidente da República, General Ramalho Eanes, também ele com antepassados ligados a Oleiros. Com a chegada da ponte, António cessa assim as suas funções enquanto barqueiro, profissão que marcou de forma muito evidente toda a sua vida, e que justifica a forma como está tão ligado ao rio, e que foi tão evidente desde o primeiro minuto da conversa. Apesar de tudo, não há qualquer nota de mágoa ou tristeza quando fala sobre o aparecimento da ponte, e diz até entredentes e a sorrir, que acabou por não ser de todo um mau negócio para si.
Por todas estas razões, era quase certo que atualmente António não poderia estar simplesmente parado e foi exatamente isso que o próprio confirmou, explicando que além de cuidar das hortas, é neste momento o Provedor da Santa Casa da Misericórdia. Funcionando apenas enquanto apoio domiciliário, contam com 40 utentes e 11 funcionárias, e é por entre gargalhadas, que diz “e se uma mulher em casa já é ruim de aturar quanto mais 11!” Tudo em António faz antecipar a energia que ainda carrega dentro de si, como um fogo sem fim à vista, que faz dele alguém a quem a vida por mais fintas que lhe faça, nunca o fará cair. A sua resiliência é tão inequívoca, que se torna certo, de que viria a ser ainda, mil e uma outras coisas se assim fosse preciso.
Não tivesse a vida outros propósitos e a conversa teria continuado indefinidamente. Todavia, houve ainda tempo para falar sobre os concursos de pesca, que todos os anos enchem o rio de dezenas de embarcações, tempo para partilhas um pouco mais duras sobre momentos vividos nos incêndios, mas também sobre os seus muitos investimentos e negócios ao longo da vida, dos sucessos e dos insucessos, do passado e também do que ainda está para vir, numa fase de tanta incerteza para todos. Durante toda a conversa, os olhos de António que foram o primeiro elemento que nele se destacou, foram também eles dando o tom às diferentes histórias. Marejados em certos momentos, sorrindo na grande maioria deles, e sonhadores, sempre. Mais do que um simples diálogo, António fez do momento uma viagem, carregada de todo o tipo de peripécias, e com as pausas certas para que tudo pudesse ser devidamente absorvido.
Num lugar de fé como Álvaro, no desenho das escarpas rasgantes do rio Zêzere, lugar de uma beleza inigualável, onde apenas o som da natureza se eleva, conhecer o Sr. António Correia, foi colocar o rosto certo na paisagem. Dúvidas houvessem, de que ninguém conta melhor a essência de um lugar, do que as pessoas que fazem parte dele, estariam aqui desfeitas. De alguma forma quase simbólica, António é nos dias de hoje, a figura do tal Álvaro Pires, a quem foi dada a missão de cuidar deste lugar. Existe de facto essa relação de certa forma paternal, na forma como olha não só por esta aldeia, mas pelas pessoas que ainda são parte dela. Num lugar tão especial como Álvaro, o Sr. António surge como retrato fiel de uma genuinidade que o tempo não esbate, apenas engrandece.
Agosto 2020
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