cidadelhe

Situada na freguesia do Vale do Côa, no concelho de Pinhel, mora um lugar que parece ter ficado cristalizado no tempo. A sensação é a de que uma redoma invisível terá caído sobre ele, e que dessa forma tudo o que ali existia permaneceu incólume, protegido por uma espécie de proteção divina. São muito poucos os locais onde nos dias de hoje ainda se consegue sentir esta preservação do tempo, como se de facto fosse possível que os relógios ali tivessem deixado de funcionar. Contudo, essa é realmente a verdade de Cidadelhe, e qualquer um que a visite, conseguirá perceber a seriedade destas palavras. Este é um lugar de inacreditável beleza natural e paisagística, localizado a norte de Pinhel, num monte a mais de 500 metros de altura, entre os rios Massueime e Côa. Esta é considerada por muitos, uma das mais bonitas aldeias de Portugal e logo no primeiro vislumbre torna-se fácil perceber porquê.

O Prémio Nobel da Literatura, José Saramago acabaria por imortalizar a beleza desta aldeia no seu livro “Viagem a Portugal”, escrito entre 1979 e 1980, aquando de uma viagem onde percorreu o país de lés a lés, criando um misto de crónica, narrativa e recordações. Nas suas palavras “A aldeia é toda pedra. Pedra são as casas, pedra as ruas…” Também no seu aclamado livro, “Viagem do Elefante”, passa Saramago por Cidadelhe e é sob essa inspiração, que viria a nascer uma Rota por estes territórios do Côa, que por se encontrar no extremo norte do concelho de Pinhel, ficou apelidada pela população desta região como o calcanhar do Mundo. Confesso que de certa forma me fiz acompanhar pelo mestre Saramago nesta minha jornada por Cidadelhe. Mais do que pisar as mesmas pedras que ele pisou, viajar na forma como ele pensou este lugar. Toda a aldeia é pedra, é certo. É bonita e tem um encanto geográfico, talvez, único. Mas, tal como todas as aldeias que alimentam a profundidade do nosso Portugal, as bonitas e as feias, são feitas de pessoas e de costumes que se tratam por cultura. Na minha viagem, a cada rotina de Cidadelhe, uma vénia à humanidade deste lugar. Acompanhei, de forma deliciosa, a tratar da azeitona a caminho das prensas do lagar, acompanhei um banal caminhar, acompanhei saídas e chegadas de trabalho. Fui cumprimentado generosamente e com sorrisos, por quem percebe de receber, porque o faz sempre no formato sem filtro, assim como quem sorri para aquele amigo de sempre. Como não gostar disto.

Cidadelhe vai além das suas ruas e das suas casas de pedra. Cidadelhe vive num santuário com diferentes magnitudes. Consciente de que a partilha eleva momentos e lugares, decidi acompanhar-me nesta exploração, do “além das casas e das ruas”, pelo Nelson Antunes, um dos responsáveis da empresa Cidadelhe Rupestre. Além de um alojamento com casas de diferentes tipologias, esta empresa oferece ainda opções de safaris, visitas com guias certificados e passeios pedestres.

O Vale do Côa é um daqueles lugares fascinantes, que detêm uma beleza tão invulgar e tão impactante, que a primeira sensação quando o descobrimos pela primeira vez, é a de que os nossos olhos nunca conseguiram captar de facto o que está à nossa frente. Mas como se essa beleza que vemos a olho nu, não fosse já suficiente, é ainda um repositório de história e de arte. A ideia de arte rupestre que automaticamente nos leva para a escuridão de uma caverna, é aqui totalmente desconstruída. Aqui, essa arte não está confinada a uma qualquer cavidade subterrânea, ela aqui emerge à superfície e transforma este lugar, num verdadeiro museu a céu aberto. Foi em 1994, há quase trinta anos atrás, que a existência da Arte do Côa foi anunciada publicamente, embora três anos antes, um arqueólogo tivesse já dado essa indicação. A construção de uma barragem estava nessa altura iminente, mas através da pressão pública e atendendo à opinião dos especialistas, esse projeto foi abandonado como forma de preservar as gravuras. Foi assim que em 1996 se deu a criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa, abrangendo um território de mais de 1200km2, oitenta sítios com arte rupestre e 4 concelhos, entre os quais Pinhel e formando o maior santuário de arte rupestre ao ar livre, o que lhe valeu a classificação como Património da Humanidade em 1998. 

Decorrendo parte desta conversa em plena Reserva da Faia Brava, decidi fazer por estar mais desperto e perceber a importância daquele lugar. O núcleo de arte rupestre da Faia Brava encontra-se classificado como monumento nacional desde 1997 e existem ainda variados outros núcleos. A Faia Brava é gerida de forma a promover a preservação da natureza e da biodiversidade que ali existe. Através da existência desta área protegida foi possível a criação de locais seguros para a nidificação das aves, como o grifo, a águia-real, o abutre do Egipto e a cegonha-preta. Em 2010, a Reserva da Faia Brava foi classificada pelo Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade como a primeira Área Protegida Privada do país. Além destes aspectos, a Faia Brava funciona, cada vez mais, como pólo de demonstração nas áreas de protecção florestal, educação ambiental e eco-turismo, envolvendo a comunidade nestas ações. 

O Nelson explica-me que os motivos paleolíticos do Côa se inscrevem no cânone da arte paleolítica europeia, caracterizada pela representação de grandes herbívoros, como é o exemplo que me mostra de um auroque, segundo ele, o maior herbívoro que andava nesta região nesses tempos tão longínquos. É também nesta fase do percurso, que fico a perceber a presença ali, dos cavalos garranos. Estes cavalos selvagens são autóctones e estão em vias de extinção, então há cerca de 15 anos que foram ali introduzidos, de forma a que por um lado pudesse ser protegida a espécie, e por outro, que estas manadas ao pastarem dentro da reserva, reduzissem a carga combustível. 

O conjunto de sítios arqueológicos do Vale do Côa, trata-se do maior conjunto de arte paleolítica ao ar livre do mundo, com manifestações artísticas inseridas em vários momentos da Pré-história, e foi pela consciência da sua importância, que em 2010 foi inaugurado o “Museu do Côa.” Projetado pelos arquitetos Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, começou a ser construído em 2007. Convém referir que o Museu não é de forma nenhuma um substituto à visita dos sítios de arte rupestre, mas antes uma plataforma cultural, de dinamização e de conhecimento, onde além de ser possível conhecer de forma mais profunda a arte do Côa, é também possível assistir a exposições, originais de arte móvel e outros eventos. O que é também curioso e atrativo neste espaço é exatamente a sua arquitetura. O facto de a fachada ter sido objecto de um tratamento superficial imitando as irregularidades naturais do xisto, a rocha predominante na região, faz com que exista uma integração quase perfeita na paisagem envolvente. 

Nelson conta que foi há cinco anos que o projeto da Cidadelhe Rupestre se iniciou, e que no início era acima de tudo a Grande Rota do Côa o que trazia pessoas até ali. Contudo, o público foi-se modificando ao longo do tempo e consequentemente, a oferta foi também crescendo. Hoje um dos grandes atrativos são também as atividades de birdwatching, observação e fotografia de aves e as caminhadas pedestres. No início desta expedição, fiquei confuso com a presença de um engenheiro eletrotécnico de profissão, envolvido num projeto deste tipo, mas enquanto deixava este lugar para trás, assumi de forma clara, a resposta a essa questão. A envolvência da natureza é ali tão feroz, que acredito piamente possa funcionar como um chamamento, e esse argumento basta-me para compreender a decisão do Nelson e a pertinência do seu projeto. Se o meu enamoramento pelo Vale do Côa já se fazia sentir, depois daquele dia ficou por demais evidente. Existem lugares onde a natureza foi incrivelmente generosa, e este território é uma prova viva disso mesmo.

Dezembro 2020

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