UMA VIAGEM POR SÃO MARCOS DA SERRA
São Marcos da Serra é uma pequena freguesia, pertencente ao concelho de Silves e localizada a sul do país, na região do Algarve. Uma freguesia rural, de baixa densidade populacional, em plena serra algarvia, circundada pela Ribeira de Odelouca, a partir da qual, hoje se alimenta uma barragem, à qual foi dado o mesmo nome. Uma das particularidades da sua localização, prende-se com o facto de estar numa zona de transição entre o Baixo Alentejo e o Algarve e também, entre duas serras, a serra de Monchique e a serra do Caldeirão. As casas de apenas um piso, e os quintais com pequenas produções agrícolas, são o postal mais comum deste lugar, onde o declive do terreno, leva também à irregularidade da própria malha urbana.
Esta pequena aldeia, tipicamente serrana e tão tradicional portuguesa, conta hoje com pouco mais de 1000 habitantes, sendo que o número de pessoas a residir aqui, foi decrescendo particularmente, desde a década de 60, e sendo que muitas dessas pessoas emigraram, particularmente para França, em busca das oportunidades de trabalho que aqui escasseiam, já que as principais atividades são ainda, a pastorícia e a agricultura. É curioso que a descrição do que é, não só o cenário mais imediato e visível deste lugar, como o porquê de o ser assim, podem de forma pouco refletida e quase inconsciente, levar-nos a criar um imaginário meio sombrio ou até inóspito, mas nada poderia ser mais errado. Em certos lugares, a sua ruralidade é acima de tudo, um elemento que lhes atribui um certo carisma, uma certa camada de encantamento. São Marcos da Serra, é um desses lugares, e essas duas características, são aqui além de palpáveis, exacerbadas.
A sua localização tão particular, no colo de duas serras, é muito provavelmente, um dos motivos mais evidentes, da sua riqueza paisagística e natural. Por outro lado, as várias transições e fronteiras que se demarcam neste território, são também as linhas com que a sua unicidade se vai costurando. A Serra do Caldeirão, enquanto fronteira entre o litoral e o barrocal é desenhada por um traço acidentado, o que lhe confere uma paisagem muito peculiar, onde elevações arredondadas, os cerros, são cruzados por pequenos cursos de água. Por outro lado, a Serra de Monchique, por estar mais próxima do mar, possui uma vegetação mais diversa, e é também local das Caldas de Monchique, uma estância termal, já que as propriedades terapêuticas destas águas são reconhecidas desde o tempo do Império Romano, época em que receberam a designação de “águas sagradas”.
Segundo a história nos deixa perceber, esta freguesia foi povoada desde tempos remotos. Prova disso são os vários achados ali encontrados, como as necrópoles do Sítio da Sapeira, e do Sítio do Monte Branco, datadas do séc. I e II, mas também os topónimos de origem árabe, como, Alcaria, Benafátima e Corte Mourão, que não deixam margem para dúvidas quanto à ocupação árabe deste lugar.
No regresso ao presente, esta viagem começou junto à Igreja Matriz, com construção do séc. XVII, como ponto central e talvez o ponto mais alto da aldeia. Pelo menos foi assim que o senti. O dia estava escuro, com promessa de chuva, mas quente e húmido, fazendo o corpo funcionar para regular a relação com o lugar. São Marcos estava em silêncio, nem o vento se fazia ouvir. Eram raros os veículos que se movimentavam e apenas um ligeiro entra e sai de pessoas nos comércios locais, deixava cair a ideia de que São Marcos não era um quadro, a três dimensões, onde tinha acabado de entrar.
Sem mapa, nem algum objectivo de visita, comecei a andar. O saber que não sei para onde estou a ir, nem saber o que vou encontrar, são injecções de liberdade. Uma liberdade ingénua, que obriga a fazer escolhas, quase todas sensoriais. Vira na rua à esquerda, observa o contorno de uma casa à direita, amplifica o pormenor de uma chaminé em cima e segue o som da água que corre lá em baixo. Como o corpo a comandar sem ordens e assim, sem tempo. E em São Marcos não pode existir tempo, para ser vivido e sentido. Tem que ser visto com um objecto delicado e compacto, não como um manta retalhada de pequenos pontos de interesse.
As ruas são quase todas feitas para um só carro, o branco domina a palete de cores interior e o verde envolve o cenário exterior. A laranjeira parece dar lugar à oliveira, quase como anunciando uma proximidade ao Alentejo. E este é de facto um Algarve diferente. Não se sente a maresia. Os seus traços são feitos de transições, paisagísticas e culturais. As pessoas que vou encontrando, sempre simpáticas e sem estranhar a minha presença, seguem na mesma velocidade que eu. Não parecem estar preocupadas com tempo. Desenrolam os seus pequenos afazeres com a leveza de quem aprecia o tempo de conversa com o vizinho do lado. O meu andar tornava-se mais confiante com aumento dos passos, como se o meu corpo fosse construíndo um mapa interno da aldeia e passando informações de confiança. Mesmo sem fazer o nome das coisas, já me sentia confiante no caminho e familiarizado com as decisões sobre o caminho a tomar. Sim, talvez se possa chamar de conexão. Estava a ficar em sintonia com o lugar e talvez o lugar comigo.
Entre muitas ruas percorridas e conversas de ocasião, sempre em movimento, voltei a encontrar a “minha” igreja e ponto de partida. Sentei-me numa cadeira branca, com braços a dar conforto, encostada a uma parede branca que parecia pintada de fresco, junto a um pequeno café. Pedi uma água e deixei-me ficar. Já conhecia caras da aldeia e já as cumprimentava com sentimento de pertença. Sim, a magia da ligação humana que aquece lugares como este. O sino tocou, muitos regressaram do trabalho, algumas crianças trouxeram mais movimento. A promessa de chuva não se concretizou. A minha água terminou e deixei-me ficar na “minha” cadeira branca, perto da “minha” igreja. Ligado na melancolia deste lugar, que sabe e faz tão bem.
Julho 2020
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