Vale do Guadiana. Para mim é uma peça de arte. Daquelas que basta um olhar para nos emocionar e mexer com sentimentos não consagrados. É como um rasgo de génio de quem teve o condão de criar, assumindo uma forma única e especial. Uma peça tão genial que consegue passar despercebida a um simples olhar, mas que embasbaca (e prende) um olhar mais atento. Comigo também funcionou como um íman, qual poder magnético e com um efeito tal, que faz os meus olhos brilharem de cada vez que se fala deste lugar, com aquela sinceridade pura, apenas acessível aos lugares que gostamos muitos. O Vale do Guadiana é um parque natural, que aglutina quase todo o concelho de Mértola. Tem quase 70.000 hectares de área, feitos de declives e planícies, de matas e de zonas (enormes) de pastagem, é uma das “grandes casas” do rio Guadiana, que dá nome a este parque e vale, e que assume uma irreverência única ao longo deste troço. É também a casa de muitos seres icónicos como a águia-real ou o lince ibérico. E que bom deve ser chamar de casa a um lugar como este. Não é? Que comece a viagem.

Começo a minha viagem pelo Parque Natural do Vale do Guadiana no seu extremo Norte. Seguindo viagem ao ritmo e no mesmo sentido do rio. Sigo pela estrada que une Beja a Mértola. Estradas que já fiz milhares de vezes e que pensava conhecer como a palma das minhas mãos, tantas foram as horas que nela passei. Agora sinto que esta simples estrada, que atravessa o parque, esconde segredos. Esconde segredos além da vegetação, placas e rails de proteção. Não são segredos tenebrosos, são como bençãos para os nossos sentidos. Começo pelo primeiro “segredo”. Viro à esquerda na estrada, em direção a Corte Gafo. Entre pequenas povoações, estradas estreitas, paisagens milenares e icônicas, estradas de terra batida e pessoas simpáticas, encontro o Pulo do Lobo. Para quem conhece o Guadiana, a Sul de Mértola ou a Norte do Alqueva, não o vai reconhecer na sua passagem pelo Pulo do Lobo. A sua passagem quase fica limitada a poucos metros de largura, entre uma superfície rochosa que parece ter sido desenhada e que vai além da imaginação. É difícil qualificar, visualmente, esta estreita passagem natural de um grande rio como o Guadiana. Apesar da grande dimensão do aglomerado rochoso, é mais fácil de imaginá-lo numa ribeira ou num pequeno rio que atravessa uma serra. Não é expectável num vale e num rio internacional com quase 1000km de distância. Talvez por esta curiosa formação, quando chego ao Pulo do Lobo, admirado com a dimensão do local, fico, simplesmente em silêncio, apenas a ouvir o duro bater da água nas rochas e os ruídos predadores das aves de grande porte que habitam o vale. Existe um lado dramático e de carga intensa neste Pulo do Lobo, talvez pela diferença, talvez por sentir a água e o rio a lutar pelo seu espaço. Mas ao mesmo tempo, considero esta dureza como algo de belo, com se só confere aos lugares enigmáticos. É claro que também, facilmente, consegui associar este lugar aos filmes de fantasia. Facilmente via um hobbit a descer este trecho de rio fugindo de um orc ou de outra criatura maléfica. Ainda “inundado” pela dureza dramática do Pulo Lobo, sigo viagem para Sul.

Continuando ainda pelo rio, um pouco mais a Sul, descubro o Moinho dos Canais. Aqui a paisagem não é dramática e o rio já não se esforça para se mover. O vale é enorme e a paisagem é graciosa, não fosse aquele calor seco típico do Alentejo, poderia pensar que estaria num outro qualquer lugar, já que esta paisagem quase que torce todos os conceitos típicos da paisagem alentejana, sempre associada à planície. Os moinhos, hoje desmantelados, são também uma espécie de homenagem da multiculturalidade desta região. Num vale rochoso e íngreme, feito de grandes declives, encobre (e encobria) grande campos de cereais. Difícil é imaginar os agricultores, certamente com os seus burros, a descer as gigantes encostas do vale para chegarem aos moinhos. Seria certamente uma história dentro da história.  Existem mais uns quantos moinhos e azenhas ao longo deste troço do rio. Continuo percorrer as estradas do parque. Não me consigo concentrar entre pequenas conversas ou simplesmente identificar a música que “corre” no rádio do meu carro. Sei que ainda existem mais segredos por aqui. Para além dos segredos que são paisagens arrebatadoras e feitos geológicos com milhares de anos, existem muitos habitantes “famosos” por aqui. Quase como sabermos que eles podem estar atrás de qualquer árvore ou de qualquer arbusto. Sinto que os posso ver a qualquer instante. Não sigo com aquele desejo de possessão, sigo com respeito. Estou num parque natural, não paguei bilhete para um jardim zoológico. O habitante mais famoso talvez seja o lince ibérico. Talvez pelo seu carácter e figura pouco comum, talvez por ser uma espécie (muito) ameaçada e rara, transforma-se numa espécie de unicórnio. Ver um lince, seria uma memória para toda a vida. Mas, apenas senti a sua presença. Não vi qualquer lince, mas senti-me feliz por saber que tive perto e que muitos deles vivem felizes neste maravilhoso espaço. Outro dos habitantes famosos é a águia-real. Essa, nesta viagem, mostrou algumas vezes o ar da sua graça. Ao longe, a dizer que está presente mas mantendo o seu carácter discreto e imponente. Sentia-me dentro do programa da BBC, daqueles que tantas vez vi nas manhãs de fim de semana. Naquela fase da minha vida em gostava de ser como o David Attenborough (acho que aconteceu a muitos, certo?), adoraria ter sabido que existiam lugares como este no país onde nasci. Talvez não mudasse nada, talvez apenas o orgulho chegasse mais cedo. Dentro do filme que estava a viver, entre encontros imaginários com o unicórnio lince ibérico,  e de pescoço erguido a seguir as águias ou  de ouvidos atentos a tentar descobrir que passarinho especial canta assim, eis que surge um gamo (parecido com veado). Ao melhor estilo do bambi, que emociona qualquer um, parou, olhou para mim e pousou para a foto. Só faltou dizer-me adeus. Tão simples e tão belo. Mais uma vez a prova que  muitas vezes se encontra a perfeição na simplicidade. Fiquei 15 minutos de sorriso constante, depois deste encontro.

Continuo viagem pelo vale. Sigo o troço do rio e chego ao seu epicentro. Deixo as paisagens feitas de silêncio e dou de caras com a histórica vila de Mértola (podem ler minha história sobre o Centro Histórico de Mértola, aqui). Esta povoação muralhada e cheia de histórias, que bem conheço, parece ganha outra dimensão. Uma dimensão associada a um lado natural, quase em estado virgem. Quase com a mesma figura que os exploradores do passado a vislumbraram. O mesmo rio que rasga o Pulo do Lobo, ao passar pela vila, ganha uma história. A graciosidade do Guadiana mantêm-se, mas a dimensão aumenta. Este rio, no passado, serviu como uma importante autoestrada comercial. Esta rota comercial fez de Mértola um dos mais importantes portos de interior da Europa. Sim, por culpa (e por mais algumas curiosidades) do rio, Mértola apresenta o grau de multiculturalidade que muitos conhecem. Ainda hoje se percebem os diferentes traços, como o castelo cristão ao lado de uma antiga mesquita. Todos de olhos postos no rio. O mesmo rio virgem do Moinho dos Canais, que no epicentro despertava a cobiça de muitos. Suficientemente largo para navegar, relativamente próximo do Oceano Atlântico e relativamente próximo do exotismo africano. Depois, também quero acreditar que a paisagem de Mértola também tenha encantado alguns. Continuo a viagem. Agora sinto que mudei de canal. Mudei da BBC para o Canal História. A qualidade e o interesse mantêm-se, mas as curiosidades são distintas. O vale começa a ganhar outra forma. Agora o seu leito ganha maior pujança, quase a antecipar a presença do oceano. As encostas do rio perdem a imponência do troço do Pulo do Lobo, mas ganham diferentes cores e novas visões. Continuo a sentir o rio como especial, continuo a relembrar as diferentes histórias que ele já me contou. No extremo Sul do parque e do vale encontro o seu último segredo, quase como uma despedida em grande. Este segredo esconde outro segredo. Cheguei ao Pomarão, antigo porto fluvial de Mina de São Domingos. As ruínas do porto e o que sobra da antiga linha ferroviária, não fazem fugir o carácter a este lugar. Mais uma vez, tão diferente de todos os outros. Mais uma vez uma grande história para contar. O Pomarão dista cerca de 20km da antiga mina, entretanto encerrada (podem ler a história sobre Mina de São Domingos, aqui), parece que ainda consigo ouvir os barulhos e sentir toda a agitação que este lugar teria. Hoje o rio parece grande aqui, imagino que na altura parecesse curto, dada a dimensão e ao número de navios que por ali circulavam, fazendo o percurso do Guadiana entre esta aldeia portuária e o oceano. Hoje assentam arraiais no Pomorão dezenas de autocaravanas com gente de todo o mundo. Estes habitantes ocasionais, misturados com os nativos habitantes das particulares casas do Pomorão, formam uma simbiose curiosa. É muito bom viver a calma do Pomarão nos dias de hoje. À boa maneira alentejana, parece que o tempo passa mais devagar por aqui.

A minha viagem termina. O rio continua. Agora percorre os caminhos do Algarve e o vale e as suas feições peculiares terminam com a minha viagem. Encantado com as memórias que criei neste lugar, não secreto, mas sagrado.  



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