“Diz-se que, logo a seguir ao Dilúvio Universal, certo homem morava com sua mulher e muitos filhos, numa rústica cabana feita de paus e colmo, no campo. Consigo vivia também um seu irmão casado que, como aquele, tinha numerosa prole.
Nesses tempos recuados o primitivo homem não sabia cultivar as terras e, assim, cresciam, espontâneas, por toda a parte, as mais diversas e variadas plantas, algumas das quais, como o trigo, o centeio e o arroz, as árvores de fruto, a figueira, a laranjeira, e arbustos como a vinha, produziam frutos de que ele se alimentava.
Era o mês de Setembro. Aqui e acolá, entremisturadas com outras plantas, agarradas à terra brava e inculta, desenvolviam-se as cepas ou videiras carregadas de roxos e abundantes cachos de uvas.
Para satisfazerem as necessidades instintivas de alimentação, as indígenas mulheres daqueles dois homens tinham acorrido a certo lugar um tanto afastado da cabana a procurai alguns frutos e raízes com que se alimentar e dar de alimento à prole, enquanto que os homens, levando consigo alguns instrumentos mortais, procuravam caça para comer.
Aconteceu que as ditas mulheres ao colherem os frutos que procuravam viram roxos e maduros cachos de uvas a que elas acharam muito graça pela forma dos frutos. Surpreendeu-as ainda, quando, ao comerem alguns bagos, os acharam tão saborosos e doces.
Comeram até fartar e deram de comer a seus filhos.
Não se contentando com as uvas que comeram, entenderam por bem colher e levar para a sua cabana alguns cachos.
As trevas caíam sobre a terra que cobriam com seu manto escuro. Logo que os maridos dessas mulheres regressavam a casa com alguns animais que haviam caçado, elas, pressurosas, correram a dar a provar os engraçados frutos (as uvas), de que elas desconheciam o nome, e eles, provando-os, acharam-nos doces e bons.
Guardaram alguns cachos numa tosca vasilha de madeira cavada de um tronco de árvore, que taparam com uma tampa também de madeira sobre a qual colocaram algumas pedras para se não destapar facilmente.
Passaram-se dias e, até, semanas.
Entretidas com outras coisas que lhe despertavam a atenção, as ditas mulheres não mais se lembraram dos estranhos frutos (os cachos de uvas) seus desconhecidos. E sucedeu que a tampa, que cobria a vasilha onde haviam guardado os cachos, era frágil, e as pedras pesadas, partindo-a, caíram sobre as uvas depositadas no fundo daquela, as quais ficaram esmagadas com o peso das pedras.
Passado algum tempo, uma das ditas mulheres indo verificar se a vasilha de madeira estava limpa para nela depositar frutos silvestres e outros alimentos, viu, com espanto, no fundo da vasilha, certo líquido e esmagadas, apenas com os engaços secos, as uvas de que não mais se lembrara.
Cheia de curiosidade, provou o estranho líquido e achou-o doce e bom. Espantada, foi chamar a cunhada, a quem deu a provar o líquido desconhecido. Esta também o achou bom e gostou.
Em face do que presenciavam, logo pensaram as rudes mulheres que esse líquido era proveniente das uvas que as pedras, caindo sobre elas, haviam esmagado e produzido aquele líquido.
De prova em prova, ora uma, ora outra das mulheres, sucedeu que elas, bebendo o liquido de que tanto gostaram, se foram tornando tontas e em desequilíbrio. Com a tontura crescia nelas uma alegria íntima e estranha que não sabiam explicar. Vai daí, a certa altura, já riam às gargalhadas e sentiam que estavam tontas.
Não podendo ter-se em pé, que as pernas vergavam como canas verdes, foram deitar-se mas continuaram a rir e a dizer coisas disparatadas e sem nexo.
O seu estado anormal e esquisito manteve-se até à noite quando os maridos regressaram da caça.
Qual não foi o espanto deles vendo-as naquele estado e jeito de riso e de tontura. Logo pensaram que alguma coisa de grave lhes havia acontecido. Parecia-lhes que tinham sido tomadas de espírito diabólico ou possesso.
O quer que fosse tinha passado por elas — pensaram eles — e perguntaram-lhes a razão por que estavam assim.
As mulheres tudo lhes contaram.
Mal se tendo em pé, uma delas levou o marido a ver a vasilha, no fundo da qual estava depositado o desconhecido líquido.
Com efeito, provando-o, gostou dele e deu-o a provar ao irmão que também gostou.
Havia sido feita uma grande descoberta, é que aquele líquido proveniente das uvas que havia fermentado, era vinho. Estava descoberto o vinho.”
DELGADO, Manuel Joaquim A Etnografia e o Folclore no Baixo Alentejo Beja, Assembleia Distrital de Beja, 1985 [1956] , p.238-239
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