19h00, dia 29 de Maio de 2018. Estava em São Roque do Pico, ilha do Pico. O meu telemóvel toca. Não conhecia o número. Atendo e do outro lado uma voz amigável diz-me: “Olá Carlos! Sou o Renato Goulart e vou ser o teu guia de montanha. Vamos subir amanhã até ao topo da Montanha do Pico, é o dia em que as condições vão estar mais favoráveis.”. Nem penso muito e respondo um tranquilo: “Tudo bem. Vamos subir amanhã. Encontramo-nos amanhã a que horas no abrigo de montanha?”. Respondo isto na expectativa de ouvir uma resposta do género “8h00” ou “9h30”. Mas a resposta do Renato foi: “está no abrigo à 1h30. Subimos de noite e vamos assistir ao nascer do sol no topo da montanha. Leva roupa quente.”. Bem, confesso que me assustei. “Subir de noite, como assim subir de noite!?”. Não é o Everest, mas é o ponto mais alto de Portugal com 2351m, não é a mesma coisa que subir ao topo do castelo de Abrantes para tirar um foto com a Liliana. Mas, as múltiplas questões que estava naquele momento a colocar ao meu interior não afectaram a minha pronta resposta. Respondi: “Tudo certo Renato. 1h30 estou lá. Levo roupa quente”. Ia subir à Montanha Pico numa noite de lua cheia.

Contextualizando. Estive uma semana, no mês de Maio, do ano 2018, na ilha do Pico, mais concretamente no território de São Roque do Pico, um dos três concelhos da ilha. O objectivo seria viver o melhor e mais genuíno que este território tinha para oferecer. Destas vivências iriam sair algumas histórias. Numa espécie de guião que fiz antemão, uma das histórias teria que ser a Montanha do Pico. Não só é o maior símbolo da ilha, transversal a todos os concelhos, mas como é a mais pura das razões da ilha existir. Uma espécie de ponto zero para tudo o resto que aconteceu ali em seguida. Já tinha subido à Montanha em 2015. Em 2018 voltaria a subir à Montanha. A subida era a mesma, os mesmo socalcos, a mesma distancia, mas sabia que a história da subida seria diferente. Isto muito antes de saber que iria subir de noite. Acredito que todos momentos têm a sua história, ainda para mais tratando-se de monumento natural e um símbolo como a Montanha do Pico. Na preparação do plano de viagem, em conjunto com o meu anfitrião na ilha, o Daniel Assunção, ainda tentámos definir um dia para subir à Montanha, mas instabilidade do tempo nos Açores não permite planos com grande antecipação, ao que a sensatez do Daniel concluiu: “vem para a ilha, durante a semana vemos qual o melhor dia para subires”. Mais um vez, subir à Montanha do Pico não é a mesma coisa que subir ao topo do castelo de Abrantes, por isso iria precisar de um guia de montanha, alguém experiente que não só me iria guiar como contar algumas histórias da Montanha. Na discussão sobre com quem iria subir a Montanha, surge um nome. Renato Goulart. O Daniel diz-me: “Renato já subiu à Montanha mais de 2000 vezes”. E eu: “como assim!? 2000 vezes! Mas ele tem 100 anos?”. Na verdade, o Renato ainda é rapaz novo e com saúde para dar e vender. E sim, é verdade que já subiu a Montanha mais de 2000 vezes, com a nossa subida iria completar o número 2179. Assim por alto, imaginando que o Renato sobe à Montanha nos últimos 20 anos, dá uma média de uma subida a cada 3 dias. Impressionante. Quando o Daniel me falou nesta história do Renato pensei 3 coisas: primeiro, ele conhece melhor a Montanha do que a sua casa, já que deve passar lá mais tempo (conclusão fácil: a Montanha é a verdadeira casa do Renato); segundo, subir com o Renato seria uma história, dentro da história; terceiro, não foi bem um pensamento, foi uma acção. “Daniel, liga ao Renato e diz que subo com ele!”. Não poderia existir outra hipótese. Passado uns minutos o Daniel diz-me: “está tudo tratado com o Renato, só não sabemos é quando, ele liga-te quando achar que é a altura certa”. E assim foi.

A subida estava marcada para a madrugada de quarta-feira. 1h30 a hora combinada para o encontro no abrigo, que funciona como ponto zero para o inicio de aventura. Nos dias anteriores tinha chovido na zona da Montanha, nos próximos dias também estava prevista chuva e naquela quarta-feira também estava a chover. Estava meio inquieto. Por tudo. Subir de noite, o mau tempo e o simples facto subir, estavam a colocar-me a pensar na vida. Como só soube a hora da subida poucas horas antes da subida, também me deu pouco tempo para me mentalizar para o “evento”. Depois, entre todos os afazeres que tinha na ilha, apenas me deitei por volta das 23h. Sei que não adormeci logo, aliás nem me lembro de dormir. Mais uma coisa a pesar na minha consciência. “Como eu vou subir à maior montanha de Portugal sem descansar?”, pensava eu. 1h da manhã já estava eu sair de Prainha, localidade onde tinha montado o meu quartel general (sim, a minha casa na ilha). Estava um temporal ainda pior que nos dias anteriores. Chuva, vento e nevoeiro, mal via um palmo à frente dos olhos. Quanto mais altitude, pior o tempo ficava. Só pensava em duas coisas: “onde é que eu me vou meter!?” e “só espero não acertar em nenhuma vaca, não vejo nada” (as vacas nos Açores gostam muito de andar na estrada). Quando já o meu GPS indicava uma grande proximidade do abrigo é que a chuva acalmou, mas sem parar, mas o nevoeiro esse, esse não dava tréguas. Estava cada vez mais denso. Tão denso e a estrada sem qualquer luz, que me vi obrigado a parar o carro para ter a certeza de onde estava. Nesse momento tive o meu primeiro contacto com a Montanha. Com o carro parado, na encosta da Montanha, abri a porta, saí do carro e olhei para esse ser gigante da ilha do Pico. Quase como uma sombra negra gigante, envolvida por nuvens que pareciam alimentar-se dela, percebia-se o movimento constante das nuvens, quase como uma espiral. Ali estava eu, de frente para a Montanha do Pico. Confesso que aquele momento quase tenebroso me aliviou. É estranho, não é? Confesso que senti algo mágico, imponente e claramente, não assustador. Ainda não consigo adjectivar bem o que senti naquele momento, talvez nem seja o mais importante. Isto parece meio romântico ou fantasioso, mas é verdade, senti uma espécie de conexão com a Montanha. Pronto, talvez tenham sido as poucas horas de sono 😉 . Voltei a entrar no carro e segui, já mais orientado, em direção ao abrigo. Não estava a mais de 1km. O Renato já lá estava à minha espera. Não estava lá mais ninguém, o que representava que iríamos ter a Montanha por nossa conta. Com um sorriso nos lábios e luz frontal na cabeça, aparece o Renato junto a mim. Apertamos as mãos e o Renato solta um: “Preparado?”. Ainda tive para lhe contar a história toda, mas depois, com um sorriso amarelo, apenas lhe disse um “Claro que sim!! Vamos a isso!”. Sem grandes demoras, começámos a subir.

Apesar de ser noite de lua cheia, as nuvens em redor da Montanha tornavam a visibilidade nula. Apenas conseguia ver o que a minha pequena luz frontal me mostrava. O Renato seguia à minha frente, literalmente, como um guia. Se durante o dia facilmente se percebe o caminho, não só as placas indicadores, mas como todos os socalcos, à noite e com o tempo daquela noite, tinha de colocar os pés onde o Renato tinha colocado. Talvez durante a primeira hora de subida, sentia-me sem qualquer problema. Sentia-me bem. Chovia com pouca intensidade, não me sentia muito cansado e as conversas com o Renato ajudavam a manter a cabeça limpa. Acredito que este momento seja aquele em a adrenalina é mais intensa. Nem conseguimos perceber se vamos em esforço ou não. Apesar de já ter feito a subida no passado, as condições eram outras, o que tornava o momento como único. Os meus pés já tinham pisado aquele terreno, mas estava a viver tudo como se fosse a primeira vez. Passada essa primeira hora, começaram os primeiros problemas, que na verdade não foram problemas nenhuns. A chuva aumentou de intensidade, as placas com a indicação do que faltava subir (todas as placas estão numeradas, sabendo o número de placas, sabemos (+-) o que resta de subida) parecia que tinham desaparecido, comecei a ter mais frio, comecei a ficar mais cansado, comecei a pensar “tu não dormiste, tu não descansaste, tu não tens treinado…e depois vais subir a maior montanha de Portugal, com chuva e à noite?!”. Nunca parei, mas percebi que tinha de diminuir o passo. Também não precisei de dizer nada ao Renato, ele diminui o passo comigo. Aqui o Renato foi fundamental. Não estava atrás de mim a bater palmas tipo Volta a França, “vamos lá! Tu consegues!”. Simplesmente, parámos mais vezes para comer e, sobretudo, falámos muito mais. Falámos sobre a montanha, sobre o que ela significa, sobre sacrifícios, sobre a vida de cada um. Contei ao Renato que estava à espera da minha Alice, que era casado com a Liliana, como era a minha vida, como tinha chegado até ali. O Renato falou na dele e nas 1001 aventuras que já viveu na Montanha (ele já subiu mais de 2000 vezes, lembram-se? Tem muitas histórias). Num ápice, a parte mais dura, em que estava a claudicar, tornou-se num dos momentos mais importantes desta aventura. Senti que estava a fazer algo único. Estava cansado que devia doer só de ver, mas sentia-me bem. Conseguem perceber? Nem sei se é um sentimento relacionado com a montanha de uma forma geral ou se foi algo que se abateu sobre mim naquela hora. Mas parecia que estava de fora a ver um filme no qual eu era o actor. Estava sozinho com o Renato, que tem a história que tem, a subir uma montanha com mais de 2 quilómetros de altura, que por acaso é a mais alta de Portugal e que por acaso fica numa ilha lindíssima, com 40 quilómetros de comprimento e que fica bem no meio, quase como perdida, do gigante Oceano Atlântico. Uma pessoa tem que se sentir especial, não? Foi o que pensei na altura. A chuva aumentou, mas a minha energia também aumentou. Já só pensava “durmo e descanso depois, agora tenho viver bem isto”. Pensei 1000 vezes na minha Alice. Pensei que lhe ia contar esta história, pensei que lhe ia contar outras parecidas, pensei que era um felizardo por ter tantas histórias para contar, pensei em subir a montanha com ela. Num ápice, chegámos ao topo da montanha. Sim, num ápice.

Estava tão feliz. É realmente um momento único. Um silêncio absurdo, o estar acima das nuvens, o sol a começar a espreitar. Pensar a imensidão à minha volta. Saber que em Portugal, ninguém, com os pés no chão, estava mais alto que eu. Senti-me pequeno e gigante ao mesmo tempo. E depois, o Renato. Sempre o Renato. Acho que estava mais feliz que eu. Sim, apenas por ter chegado, mais uma vez, ao topo da Montanha (aquela era sua subida número 2179). Ainda fez o momento ser mais impactante. Eu levava duas máquinas fotográficas, dois tripés e mais não sei o quê, mas acho que o Renato ainda tirou mais fotos que eu, “só” com o seu telemóvel. Não conseguia parar de sorrir em relação ao que estava a viver. A chuva não caía no topo da Montanha, estávamos acima das nuvens, como um avião. Mas estava muito vento e uma sensação térmica de -7ºC. Sim, muito frio. Passada a gigante euforia inicial, encostei-me à Montanha (estava quentinha, é um monumento de origem vulcânica) e aproveitei o momento. Estava num dos mais belos anfiteatros naturais, pronto para o melhor nascer do sol de sempre. 

Superou e valeu a pena. Cada segundo e toda a pontinha de esforço. As nuvens pareciam uma gigante manta de algodão doce e sol parecia que estava a nascer só para nós, os montanhistas noturnos. Estava a viver um quadro vivo, dos mais belos e impossíveis de pintar. Curiosamente, durante o nascer do sol, pouco falámos, numa espécie de respeito pelo momento. Sinceramente, nem sei quanto tempo estivemos no topo. Mais que uma hora seguramente. Nem dei pelo tempo passar. Vivemos num mundo de velocidade, em que existe uma grande dificuldade em valorizar um momento. Um único momento. E este momento vai ficar para sempre na minha memória e isso, para mim, tem um valor do tamanho desta montanha. Apesar a subida, da chuva e do cansaço, foi tão simples. Tão simples e tão belo, que me pareceu perfeito.

…sim, depois ainda tive que descer a Montanha. Não, não existe lá um teleférico para nos trazer cá para baixo. Sim, a minha Mãe pensava que era só subir e que depois, miraculosamente, aparecia cá em baixo. Tipo escorrega no parque aquático, demoramos meia hora a chegar lá acima e 5 segundos a chegar cá abaixo. Na Montanha do Pico, a descida demora tanto como a subida. Mas vinha tão satisfeito que a descida para mim foi, como diria um sábio, “com uma perna às costas”. Durante a descida, passámos por muita gente a subir. Muitos pensavam intrigados “estes sobem rápido, já vêem a descer”. Dava para perceber pela cara. Outros perguntavam de onde tínhamos saído. Lá faziam uma cara do tipo “nunca tinha pensado nisso” ou “epá, se isto já me custa de dia”. Mesmo no final e já a ver a porta do abrigo da montanha, deveriam rondar as 10h da manhã, perguntei ao Renato “Renato e se agora alguém de perguntasse se podia subir contigo, o que lhe dizias?”. O Renato, com a sua descontração respondeu-me de imediato: ” dizia-lhe para esperarem 5 minutos, ia comprar um chocolate e começávamos a subir”. Nem lhe respondi de volta (senti uma pontada de dor numa perna, só de pensar), só me ri e apertei-lhe a mão. 

Eram 17h00 e já estava na cama. Sim, na Prainha. Doíam-me as pernas com força, mas já só pensava em subir à Montanha outra vez. Isto só acontece nos lugares mágicos, não é?



INFORMAÇÕES

Esta história foi construída em colaboração com a Câmara Municipal de São Roque do Pico e com a EXperience 2351 (sim, a empresa do Renato)

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