Houve uma história que surgiu não sei quando nem como, que mudou a minha forma de olhar e sentir a praia de Santa Cruz. A história de um escritor japonês que ali viveu durante 1 ano e 4 meses. Desde que soube dessa história, de cada vez que visito Santa Cruz, procuro cruzar o meu olhar com o olhar Kazuo Dan.
“Um escritor e poeta japonês do período do pós-guerra, Kazuo Dan, viveu um ano e quatro meses na praia de Santa Cruz. Inicialmente, previra ali residir apenas meio ano. Mas adaptou-se tão bem à vida naquela que era, em 1970-71-72, uma rústica aldeia piscatória, que resolveu prolongar a estadia por ainda mais 4 meses. A razão pela qual escolhera a Praia de Santa Cruz foi porque o local permitia uma íntima interacção entre ele próprio e o Céu e a Terra, tudo com o som do mar ao fundo. “Para isso, a Praia de Santa Cruz era perfeita, sem igual. (…) Os raios solares reluziam incansavelmente no alto da minha fronte e, a meus pés, havia sempre o mar a desenhar as suas estampas onduladas”, escreveu.
Quanto não seria exótica aquela presença do escritor japonês numa aldeiazita piscatória nos recuados anos 70 do séc. XX!
Mas a mais grata recordação seria a dos amigos da Praia de Santa Cruz.
Ao rumar ao Japão, na véspera do seu 60º aniversário, a 2 de Fevereiro de 1972, ia com a esperança de regressar a Portugal. Por essa época, escreveu:
“Estive cerca de um ano e quatro meses numa aldeia chamada Santa Cruz em Portugal.
Não, tenho a sensação de que a minha casa ainda fica em Santa Cruz e estou temporariamente no Japão para ver o que se tem passado.
Porque as minhas duas empregadas Odete e Carolina estão ansiosas pelo meu regresso; porque deixei um pintassilgo que já se amansou comigo numa gaiola e um cão chamado Poli deve estar a percorrer o caminho entre a praia e a casa, à minha procura.
Não apenas isso. No quintal, os espinafres, os nabos, as couves estão todos à minha espera estendendo as folhas ao sol e o canteiro ao centro deve estar repleto de flores vermelhas, brancas e amarelas, num prelúdio da aproximação da primavera.
E mais, a Anabela do café da esquina, que me iniciou na língua portuguesa, a sua irmã Maria Cármen, a Ana Maria do salão de beleza, a Maria Calada do bar, a Judite Navarro, a escritora… Aliás, não apenas mulheres, mas também o Fernando inválido, o Carlos da taberna, os pescadores Joaquim e José e o Humberto alcoólico… Estão todos à minha espera de braços abertos.
Em toda a minha vida, nunca havia feito amizades tão sinceras e tão intensas como as de lá, no espaço de pouco mais de um ano.”
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Esta história pertence ao projeto Retratos do Centro de Portugal. Vão ser construídos 365 retratos, 365 pequenas histórias, sobre toda a grande Região Centro de Portugal. Podem consultar todos os retratos aqui.